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Sexta-feira, 19 de abril de 2024
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José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

08/02/2017 - 18h49

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José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

08/02/2017 - 18h49

A morte de Mariza Letícia e a miséria da medicina brasileira

O bom samaritano (Imagem: Divulgação)

 O bom samaritano (Imagem: Divulgação)

A doença e morte da mulher do ex-presidente Lula, Mariza Letícia, expôs uma chaga terrível de nossa sociedade: o elitismo doentio da classe médica brasileira.

 

O sentimento de ódio dos nossos “doutores” aflorou, pela primeira vez, com a implementação do programa “Mais Médico”, no segundo semestre de 2013, tendo como depositários preferenciais os médicos cubanos, tachados de escravos.

 

E, pela segunda vez, com a morte de dona Mariza, tendo seus exames vazados, sendo chamada, com escárnio, de tudo que é nome, mesmo morta, numa demonstração de que a nossa sociedade também tem um tumor maligno, que cresce dia após dia e que, a qualquer momento, irromperá numa hemorragia de consequencias catastróficas.

 

Sentimento elitista se sedimenta na universidade

 

Estudei Direito na Universidade Federal do Piauí, no final dos anos oitenta. Já naquela época pude ver o apartaid que existia no ambiente universitário. Medicina, Direito, Engenharia – eis, então, os cursos da elite, pela ordem.

 

No restaurante universitário, conheci alguns alunos de Direito e dois ou três de Engenharia. Nenhum, porém, de Medicina. Não afirmo que eles não frequentavam o R.U., lugar dos “carentes”, mas também nos ônibus não os conheci.

 

Ainda secundarista, pensei em fazer Medicina. Precisávamos ter um médico na família. Naquele tempo, tratamento de saúde ou era particular, INPS ou a indigência. Hoje, temos o SUS, o Mais Médico, o Médico da Família.

 

Dias desses cheguei em casa e lá estava uma médica conversando animadamente com minha mãe, septuagenária. Apressou-se em apresentar-se, simpática a não poder mais: “Soi médico de família”. Falando um portunhol audível, tomou suco, comeu bolo.

 

Uma emoção só

 

Pode haver ação mais santa do que essa? Pois é justamente contra essas ações de amor ao próximo que, lamentavelmente, se levanta uma parcela dos médicos brasileiros.

 

Majoritariamente formados em universidades públicas, os médicos do Brasil só querem trabalhar para os ricos. A generalização é um erro: de fato, boa parte desses profissionais não tem o caráter egoísta que se alastra nas redes. Também é verdade que há egoístas em todas as categorias profissionais.

 

Escola pública, dinheiro público, medicina privada

 

Em meados de 2015 “meu” cardiologista passou a falar comigo, durante as consultas, sobre a desgraça do mais médico, sobre a indigência intelectual dos médicos cubanos, sobre a ditadura de Cuba, sobre a... Conheço esse médico de longa data. Formou-se com mérito na Universidade Federal do Piauí, fez residência na USP.

 

Ele se vangloria, com razão, de ter sempre estudado em escola pública. Hoje, é dono de um grande nome e de uma bela clínica na zona nobre de Teresina, financiada pelo Banco do Nordeste. Tudo o que esse médico é e tem ele deve ao seu esforço pessoal e ao povo brasileiro, aí incluídos ricos e pobres, que com seus impostos lhe pagou os estudos e financiou as condições de trabalho. Mas, sua clínica não atende pelo SUS. Pobre não entra lá.

 

Lembrei-lhe essas coisas, mas ele me disse que atendia a todos os planos de saúde e que, particular, mesmo, só para os muito ricos. Mostrei-lhe mais uma vez que continuava a ser sustentado pelo povo, pois os gastos com saúde e com planos de saúde são integralmente descontados do imposto de renda. Ele, porém, não se deu por vencido: disse-me que a culpa era do governo, que não instituía uma carreira de estado para os médicos.

 

Então, não me restou alternativa: dispensei “meu” cardiologista.

 

Missa de formatura e o bom samaritano

 

Ainda no mesmo ano de 2015, ali pelo mês de novembro, fui à missa de formatura de uma turma de Medicina de uma universidade pública do Piauí. O evangelho lido naquela noite foi o de Lucas 10:25-37, em que Jesus conta a parábola do bom samaritano.

 

Diz o evangelista que, enquanto Jesus pregava, um certo doutor da lei perguntou o que fazer para herdar a vida eterna. Jesus lhe disse que deveria amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. O doutor insistiu: queria saber quem era o seu próximo. Então, Jesus contou a parábola do bom samaritano, conhecida de todos os cristãos:

 

Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos de salteadores, os quais o despojaram e, espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. Ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote e, vendo-o, passou ao largo. E, de igual modo, também um levita, chegando àquele lugar e vendo-o, passou ao largo. Mas um samaritano que ia de viagem chegou ao pé dele e, vendo-o, comoveu-se de íntima compaixão. E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, aplicando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem e cuidou dele; e, partindo ao outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele, e tudo o que de mais gastares eu te pagarei, quando voltar. Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? E ele disse: O que usou de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai e faze da mesma maneira.

 

Lido o evangelho, o padre foi à homilia. Felicitou aos professores pela dedicação, aos pais, pelo apoio dado aos filhos, aos amigos, pela compreensão. Parabenizou os novos médicos pela grande conquista, exortou-os a serem misericordiosos com os pobres, a aplicarem neles o azeite e o vinho do seu conhecimento, a atar-lhes as feridas com a gaze de sua sabedoria, e concluiu seu discurso com esta oração pungente: “Senhor, ilumina o coração desses médicos para que nunca escrevam na tabuleta de entrada dos seus consultórios esta frase maldita: ‘Não atendemos pelo SUS’”.

 

Não sei quantos médicos vão à missa aos domingos, nem quantos já ouviram ou leram a parábola do bom samaritano, nem quantos daqueles formandos têm hoje a frase maldita escrita em suas tabuletas.

 

* José Osmar Alves é promotor de justiça.

José Osmar Alves*

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