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Terça-feira, 23 de abril de 2024
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José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

05/05/2017 - 16h35

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José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

05/05/2017 - 16h35

Lavagem de carros às margens do Velho Monge – ou de como não construir uma nação

 

No já distante ano 1998, não me recordo em que mês, buscava eu cruzar a velha ponte metálica de Teresina rumo a São Luís do Maranhão. Era por volta da seis e meia. Ao acessar a Avenida Maranhão, na altura do Iate Clube, fui tomado de susto ao ver um homem acenando para mim, com uma mangueira na mão, da qual jorrava água.

 

Percebi que a criatura me oferecia um serviço, presumi que ele queria lavar meu carro. Não parei, estava com pressa e a estrada era longa.

 

No caminho, fui pensando naquele homem. Como poderia ser?! Lavar meu carro nas margens do rio?! Convenci-me de que rapidamente ele seria retirado dali por fiscais do meio ambiente, pois era impensável que se permitisse que o Velho Monge pudesse ser vítima de agressão tão visível.

 

Passei ao largo do caso até que uns seis meses depois, ao pegar novamente o mesmo caminho vi, para meu espanto, que já uns cinco ou seis novos lavadores se postavam com suas mangueiras em riste, se oferecendo para lavar o meu carro.

 

Rapidamente eles proliferaram, ocupando as margens do Rio, desde o Iate Clube até o Bairro Saci. Dividiram os espaços (dois carros por ponto de lavagem). Ocupam área de preservação permanente, pondo “ordem” na distribuição dos espaços, tornaram-se empresários informais, “empregam” gente, criaram uma nova “categoria profissional”: os lavadores de carros das margens do Parnaíba.

Tudo isso sob o olhar complacente da autoridade pública.

 

Como dito, apenas a partir de 1998 percebi a existência desse fato, mas uma excelente pesquisa universitária (que pode ser lida aqui), realizada por alunos de graduação em Biologia do IFPI em junho de 2012, trabalho denominado “Conscientização ambiental dos lavadores de veículos na Av. Maranhão, às margens do Rio Parnaíba, Teresina-Piauí”, registrou que a lavagem de veículos ali é um fenômeno que ocorre desde 1973.

 

Os pesquisadores registram que ouviram quarenta pessoas, o que representava, naquele momento, 26,7% do total de lavadores.

 

A média de ganhos, no momento da pesquisa, era de R$850,00 por mês (lembrando que em 2012 o salário mínimo era de R$622,00).

 

O objetivo da pesquisa era “verificar a conscientização ambiental e as condições socioeconômicas dos lavadores de carro na Avenida Maranhão, além de verificar quais tipos de produtos utilizados que contaminam o rio”.

 

A conclusão dos pesquisadores foi a de que a maioria dos lavadores de carro das margens do rio não tem consciência ambiental, decorrente de sua baixa escolaridade, razão pela qual aquela atividade “se configura num problema ambiental e resulta de um problema social, pela falta de emprego e falta de qualificação dos lavadores. Carecendo, então, de políticas públicas a fim de sanar este erro”.

 

O Ministério Público, por sua vez, buscou equacionar o problema. Há notícias de que em 2014 a Promotoria de Justiça do Meio Ambiente mediou uma audiência na qual tentou estabelecer uma relação de produtos biodegradáveis que pudessem ser usados na lavagem dos veículos. Ficou decidido que a Secretaria de Meio Ambiente de Teresina e a Fundação Wall Ferraz iam realizar uma campanha de conscientização ambiental dos lavadores e dos seus clientes. Na audiência alguém alertou para a necessidade de recuperação dos filtros instalados para conter a poluição do rio. Decidiu-se, ainda, que os lavadores deveriam receber (da Prefeitura, certamente) farda e equipamentos de proteção individual. Finalmente, alguém lembrou que o Ministério Público Federal (que tem uma ação contra os lavadores) deveria ser procurado para permitir que somente os lavadores que se adequassem às exigências da operação “Parnaíba Vivo” pudessem permanecer na atividade (essas resoluções podem ser conferidas aqui)

 

Como se pode notar, o pensamento dos acadêmicos que fizeram a pesquisa, bem como o do Ministério Público Estadual e da Secretaria de Meio Ambiente, basicamente se circunscreve ao problema ambiental, que decorre – segundo esse entendimento – da falta de educação dos trabalhadores e dos usuários do serviço.

 

Então, o problema da lavagem de carros às margens do Rio Parnaíba foi reduzido ao seguinte: o povo não tem educação, logo, não tem emprego; e se não tem emprego, está autorizado a “se virar” como puder, inclusive realizando ações que agridam o meio ambiente.

 

E como a autoridade não proporciona educação, dificultando o acesso do povo a um emprego regular, essa mesma autoridade faz vistas grossas para as atividades irregulares que este mesmo povo intenta fazer.

 

E o “bom” desse sistema de coisas é que a autoridade que não proporciona a educação é a mesma que, ao permitir que o povo exerça atividades irregulares, passa a ser visto como “defensor dos pobres” e, assim, vai se perpetuando no poder, num círculo vicioso inominável.

 

O grande problema disso tudo é que, tal como a poluição do rio afeta a todos, também as atividades irregulares não rendem impostos, nem contribuições sociais. Mas o povo que trabalha às margens do Velho Monge precisa ter acesso aos serviços públicos, que só se fazem com os impostos, e, mais tarde, todos eles acabarão batendo nas portas do INSS atrás de um auxílio-doença, de uma aposentadoria, de “encosto”, para os quais evidentemente não contribuíram. Resultado? Cofres públicos vazios e previdência falida.

 

Olhando assim, é fácil constata-se que de fato a culpa de toda essa desordem é mesmo da autoridade. Culpa por não oferecer uma educação de qualidade, e também por não tomar as providências de seu cargo, no momento certo, sob o lastimável argumento de que os pobres precisam sustentar suas famílias.

 

No caso dos lavadores de carro do Rio Parnaíba, bastava ter imediatamente impedido o primeiro que instalou ali sua bomba anauger. “Aqui ninguém pode lavar carro!”, deveria ter dito a autoridade.

 

Mas não. O que fez foi o seguinte: ao descobrir que os lavadores estavam usando a eletricidade da Cepisa de maneira irregular, deu um jeito de “regularizar” a energia de cada um; ao notar que o rio estava sendo poluído, apressou-se em enjambrar um sistema de “tratamento” das águas usadas (que evidentemente nada trata); ao perceber que os lavadores trabalham quase nus, uma outra dessas “autoridades” agora quer que o Poder Público forneça farda e equipamentos de proteção para que eles realizem em segurança suas atividades irregulares. Um verdadeiro descalabro as ações de uma tal autoridade.  

 

Bem fez o Ministério Público Federal que, há um par de anos, ajuizou uma ação visando retirar todos os lavadores das margens do Rio Parnaíba. Se, e quando, essa ação for procedente, vai ser um deus nos acuda, pois agora a situação está consolidada, inclusive é objeto de estudo acadêmico.

 

Enquanto isso, os lavadores seguem a vida, poluindo o Velho Monge, dando sua contribuição para manter o Brasil no lugar que lhe é de direito: o terceiro mundo.

 

Devíamos era agradecer penhoradamente às autoridades públicas de Teresina por nos darem essa verdadeira aula magna de como não se construir uma nação civilizada.

 

*Promotor de justiça e ex-secretário de regularização fundiária do Estado do Piauí.

 

 

José Osmar Alves*

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