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Quinta-feira, 28 de março de 2024
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José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

27/06/2017 - 11h24

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José Osmar

joseosmaralves@hotmail.com

27/06/2017 - 11h24

Caridade piedosa e indiferença social

Na quinta-feira, 15 de junho, fui à missa de Corpus Christi em Porto Alegre/RS. A manhã estava fria, clima que, aliás, considero apropriado para os ofícios religiosos. A Igreja de São Jorge, na Av. Bento Gonçalves, Partenon, estava repleta de fiéis e de roupas de frio para os pobres. O pessoal responsável pela coleta fizera uma decoração, uma espécie de instalação, espalhando os donativos pelo chão da grande nau, ao longo do corredor entre as duas fileiras de bancos, desde a entrada até o altar-mor, este repleto de pacotes em suas escadas e ao redor da mesa da celebração, que só a muito custo se podiam locomover o padre, os diáconos e os coroinhas. Não aprovei a disposição espalhafatosa daquelas roupas. Aquilo me lembrou o fariseu hipócrita denunciado por Jesus Cristo, que gostava de orar em alta voz à entrada do templo para ter sua “piedade” vista por todos.

 

 

Eu não levei donativos. Sendo visitante, não sabia do trabalho social desenvolvido, há anos, pelas piedosas senhoras da Paróquia de São Jorge, conforme explicação de uma delas. Como líder ou porta-voz do grupo, ela agradeceu a oferta generosa dos paroquianos, de inestimável serventia para os pobres daquele bairro, alguns presentes na própria missa, outros que os receberiam nas entidades filantrópicas que os assistem. À medida que a peroração transcorria podia-se ver o contentamento dos presentes, a reação positiva com a notícia de que a coleta de 2017 estava sendo a mais substancial, conquanto necessária, pois que lamentavelmente aumentara sobremaneira o número de pobres. Mas tudo aquilo era prova de duas coisas, ela garantiu: a primeira, de que a palavra de Deus não passa, eis que Jesus anunciara que pobres sempre nós os teríamos; a segunda, de que o nosso povo é mesmo generoso, pois se aumentam os pobres aumentam também as doações.

 

 

Terminada a missa fomos procurar um lugar para almoçar. Queríamos comer o famoso churrasco gaúcho, motivo de orgulho de todos os amigos que lá conheço. Mas, para nossa decepção, andamos em várias churrascarias, todas lotadas, com grandes filas de espera na entrada, embora se saiba que a crise é imensa, a justificar inclusive (e nós, os fiéis, aceitamos as explicações do governo) os cortes das verbas orçamentárias que beneficiariam justamente aqueles pobres objeto das nossas preocupações na missa. Tive a curiosidade de verificar o preço nesses lugares e em nenhum deles uma pessoa comia por menos de setenta reais (o churrasco e, talvez, uma cerveja).

 

 

Vi na Igreja muitas roupas usadas, em bom estado, é verdade, mas usadas. Percebi também muita gente colocando moedas na cesta de coleta (seriam aquelas pessoas a viúva mencionada naquela outra parábola contada por Jesus Cristo?). Mais tarde, porém, suspeito ter visto alguns daqueles piedosos fiéis nas filas dos que aguardavam lugar naquelas churrascarias lotadas. Eu mesmo, se tivesse esperado, também teria sido visto naquela situação esquisita, de esperar numa fila para pagar setenta reais por um almoço, depois de ter dispensado duas ou três moedinhas na sacola de Jesus e, talvez, uma peça de roupa usada na instalação das senhoras benfeitoras da Paróquia.

 

 

Adolfo Ritler - encarnação de Satã, diriam alguns -, escreveu em 1923, em seu Mein Kampf (Editora Moraes, São Paulo, 1983, p. 28): “Não sei o que é mais desolador: a indiferença pela miséria social que se nota diariamente na maioria dos que foram favorecidos pela sorte ou que subiram pelos seus próprios méritos, ou a afabilidade soberba, importuna, sem tato, embora sempre compassiva, de certas senhoras da moda que afetam sentir com o povo. Essa gente peca por falta de instinto mais do que se pode supor. Por isso, com surpresa sua, o resultado de sua atividade social é sempre nulo, frequentemente provoca repulsa, o que é interpretado como prova da ingratidão do povo. Dificilmente entra na cabeça dessa gente que uma atividade social não consiste nisso e que, sobretudo, não se deve esperar gratidão pois, no caso, não se trata de distribuição de favores, mas de restabelecimento de direitos.”

 

 

Mesmo um sujeito como Ritler sabia que o ativismo social da comunidade não deve seguir o caminho das coletas de caridade, dos chás beneficentes, das quermesses piedosas. As coletas podem até existir para os casos fortuitos ou de força maior, como complemento ou antecipação da atividade assistencial do Estado, mas nunca como uma ação continuada, realizada ano após ano, como se fosse uma espiação de culpa de quem se preocupa (ou se incomoda) com os miseráveis, mas é indiferente com as causas da miséria. Suponho que este comportamento tenha sido a razão de Jesus Cristo haver profetizado que entre nós sempre haveria pobres.

 

 

Combater a miséria requer uma ação social proativa, de reação às causas da miséria, pela educação, conscientização, politização e encorajamento dos pobres, de modo que possam não apenas assumir obrigações, mas preferencialmente exercer direitos. Eles precisam saber que o agasalho para o frio do sul e o condicionador de ar para o calor do norte é um direito, e não um favor.

 

 

* Promotor de justiça; ex-secretário de

regularização fundiária do Estado do Piauí.

*José Osmar Alves

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