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Terça-feira, 23 de abril de 2024
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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

21/09/2017 - 11h26

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Ana Regina Rêgo

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21/09/2017 - 11h26

Desenho sobre a regulação dos corpos 2: entre a naturalização, a normatização, a legalização e a rotulação do que é doença

Em setembro de 2016 publiquei aqui um artigo abordando a questão da regulação dos corpos e a complexidade que, infelizmente, envolve a temática que embora de caráter privado é tomada como pública e, sobre a mesma, se debate, se legisla, se invade a privacidade do outro, se criminaliza e até se mata, tendo como mote o que o outro faz com seu corpo do ponto de vista do desejo e da exploração sensível para o prazer.

 

 

Hoje volto a bater na mesma tecla, sobretudo, porque durante esse ano que nos distancia do primeiro texto, nada parece ter mudado em termos de disseminação e compreensão do conhecimento, muito menos no que concerne ao respeito e a liberdade.

 

           

Incoerentemente e divergente do que acontece na natureza, onde muitos animais vertebrados praticam livremente o ato homossexual sem que seus semelhantes se sintam incomodados, entre os humanos convencionou-se, em muitas culturas, que o natural e o normal seria o ato heterossexual que, por sua vez, viria a definir o homem ou a mulher o que o pratica.

 

Naturalização dos conceitos e normatização das atitudes encontram-se assim intimamente relacionados. De um lado, a norma difundida e aceita socialmente definindo o estado do que é normal e assim naturalizando conceito e atitude. De outro o seu complemento, a lei a quem todos devem obediência.

 

 

Ora, mas o que é normal? O que assim se define como normal nasce de um acordo coletivo cultural forjado no seio de uma sociedade em que preceitos religiosos e morais definidos a partir de quem em condições de poder pôde fazê-lo, de modo a convencer seus seguidores e pares de que o que não se enquadra no escopo do que assim foi definido como normal para aquele grupo social, se situa fora do mesmo e o fere em sua ética; logo se torna passível de punição através da legislação ou do enquadramento enquanto patologia.

 

 

Traduzindo: _ no caso aqui tratado, são convenções sociais e culturais estabelecidas por grupos que pretendem regular a ação dos corpos e a experiência do prazer aos limites do que entendem e naturalizam como normal.

 

 

O estranho nessa querela toda é o fato de que o prazer individual ou coletivo é privado e não prejudica nem contraria o bem público. O mais estranho ainda é a raiva e, em muitos casos, o ódio nutrido por heterossexuais em relação a pessoas homossexuais ou que divirjam de seu modo de vivenciar o prazer.  De fato, é inexplicável alguém desdenhar do outro simplesmente porque é diferente, mais inexplicável ainda é alguém agredir e até assassinar um homossexual. E em nosso maravilhoso país da diversidade,isso acontece com muita frequência.

 

Na antiguidade grega o ato homossexual não definia o homem que o praticava. Alexandre não deixou de ser O Grande, Aristóteles não foi perseguido por suas práticas na alcova.

 

 

Contudo, algumas das grandes religiões ocidentais e orientais para conseguirem guiar seus povos por caminhos que julgavam como sendo mais corretos, visto que a vida em sociedade pressupõe que se respeite o outro e assim seja respeitado, criaram códigos de ética através dos seus livros sagrados que dispõe, no caso da Igreja Católica e dos demais Cristãos, o que é ou não pecado. O que pode ou não ser punido pelo envio de sua alma para o mármore do inferno. E por onde começaram? Exatamente pela regulação dos corpos e pela inibição de todo e qualquer prazer objetivando uma pretensa purificação da alma.

 

 

Jejum e abstinência prezam pela sobrevivência sem os prazeres que o corpo possui em si, tais como a simples delicia de comer uma boa refeição ou, o prazer de amar quem se deseja tanto. Essas práticas são simbólicas e representam uma centena de outras em que o prazer sempre vai ser entendido como algo que nos desvia do caminho que nos leva à Deus. É certo que toda e qualquer prática em excesso prejudica os corpos e pode causar enfermidades, mas não é Deus quem nos pune, somos nós mesmos, a partir das escolhas que fazemos.  Deus, coitado, não tem nada a ver com isso. Deus está muito mais para bode expiatório dos homens para manutenção de suas posições de poder.

 

 

Vale lembrar que nesse contexto, a mulher, a culpada pela entrada do pecado no mundo humano, mas não só a mulher, como  todos que com ela se identificam e são caminhos para o prazer, foram perseguidos, sobretudo, na idade média, onde qualquer manifestação poderia ser enquadrada como prática de bruxaria. Não somente padres e servidores da Igreja não poderiam chegar perto de uma mulher ou de um homem que praticasse o ato homossexual; a fim de não se corromper, mas os pensadores, os grandes catedráticos de até dois séculos atrás, abominavam as mulheres exatamente porque carregavam o poder da sedução e poderiam prejudicar a compreensão e o pensamento desses homens que se acreditavam superiores.

 

 

Do meu humilde ponto de vista, a regulação dos corpos que tanto colocou o ato homossexual em condição de anormalidade ( e não preciso citar Foucault para perceber isso) a ponto de em vários paísesse tornar crime passível de punição, como na Inglaterra até meados do século XX, e hoje, na Chechênia, por exemplo; não nasceu de uma imposição de Deus, qualquer que seja o Deus em que você acredite, mas de uma vontade humana de regular os corpos para impor determinados valores morais que os que possuíam condição poder acreditavam ser os melhores para cada sociedade e para cada pessoa. Obviamente essa é uma concepção nietzschiana que procura trazer uma luz sobre a naturalização das atitudes.

 

 

Creio inclusive, que nasceu muito mais de uma prática banal do mal e não falo de um demônio ou de um anjo decaído, falo do mal humano, do ódio que nasce pela simples incapacidade de deixar que o outro seja feliz como deseja. Nasce da simples incapacidade de ver o outro e de se colocar no lugar dele. Nasce da inveja por estar preso a padrões culturais rígidos e não conseguir romper e, portanto, desejar punir quem consegue. Nasce do ódio pelo prazer, pelo simples fato de possuir, aí sim, alguma patologia física ou psicológica que o impeça de sentir o que os outros propagam que sentem.

 

 

No Brasil a legislação permite o casamento entre homossexuais e permite inclusive a adoção de filhos por casais com esse perfil. Todavia, uma massa de conservadores inconformados com os novos modelos de família que estão se constituindo hoje socialmente, bradam e lutam pelo que acreditam ser direito só seu, ou seja, lutam por um modelo de família que mantenha o padrão de umaheteronormalidade. Mas o que importa, se a família ao lado tem dois pais, sobretudo, se eles se respeitam e criam seus filhos com amor, carinho e respeito? De fato não consigo entender qual a necessidade de imposição de um padrão de normalidade.

 

 

Assim é que penso que a patologia recentemente reativada por determinado juiz deste país, é, uma mentira que se pretende convencionar como verdade. Como também creio que a verdadeira doença é o preconceito e a ausência de respeito, ou talvez, de uma conversa com Cristo que a todos respeitava e a ninguém perseguia. Fica a dica!

 

 

 

Ana Regina Rêgo

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