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Sabado, 18 de maio de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

19/02/2021 - 16h06

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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

19/02/2021 - 16h06

Percepções temporais com a interveniência tecnológica

 

A relação entre o tempo e a tecnologia tem sido intrínseca ao longo da  história da humanidade e  adoto aqui, para tecnologia, um conceito contrário ao de Douglas Adams que diz que percebemos como tecnologia  tudo aquilo inventado após o nosso  nascimento. Para este autor, tudo o que foi criado antes do seu nascimento não é percebido como tecnologia, visto que do ponto de vista das apropriações das materialidades já encontram-se no universo social dos usos, no momento em que viemos ao mundo. Contudo, na visada que adotamos aqui e dentro de uma perspectiva histórica e de historicidade a tecnologia para nós, se refere aos avanços realizados a partir da interferência do homem na natureza e que abrangem desde a escrita ao satélite e ao advento da internet, visto que para nós, de algum modo todas as tecnologias terminaram por imprimir alguma mutação nas percepções temporais das sociedades em que se estabeleceram.

Já o Tempo é o único fenômeno que possui mais de um Deus em várias mitologias. Na Grega, por exemplo, o Tempo tanto é Chronos (o Deus que tudo devora, o titã, pai de Zeus), quanto Kairós o tempo do eventual, da singularidade e ainda Aión, o tempo da eternidade.

O nosso atual contexto pandêmico tem provocado fluxos temporais complexos e que tem potencializado o relacionamento entre nós, o tempo, o tempo enquanto ser, e o fenômeno da tecnologia.

Na historiografia existe uma vasta bibliografia sobre como as pandemias abalaram a “ordem dos tempos”. Transmutaram a experiência temporal dos indivíduos que as vivenciaram. A pandemia da COVID-19 também se insere nesse contexto, só que com um grau potencializado de interferência nas experiências do tempo.

Em quase todas as pandemias a experiência do isolamento provocou  uma  percepção distinta de mundo, para cada temporalidade aqui relacionada, tais como: a Peste de Justiniano que teria acontecido por volta de 541 D.C e que vitimou entre 500 mil e 1 milhão de pessoas, do Egito ao Império Bizantino. A peste bubônica/peste negra entre 1343 e 1353 e que teria matado entre 75 a 200 milhões de pessoas. E por fim, a gripe espanhola, dentre outras.

No Brasil, atualmente e, especialmente, estamos vivenciando duas experiências bem complexas. De um lado, uma crise política pré-existente que já havia nos tirado de uma determinada ordem temporal há alguns anos, desde o impeachment de 2016. E por outro, a pandemia da COVID 19 que atinge todo o planeta.  Para além do que estamos denominando de pandemia das informações falsas que potencializam as duas  experiências anteriores. O fato é que tudo isso é configurador da desordem temporal que nos atravessa.

E é a partir deste ponto que passamos a ponderar sobre uma possível ou não, reconfiguração do tempo histórico, a partir da pandemia da COVID 19 e das relações tecnológicas que ora se estabelecem. Considerando  que o tempo histórico compõe o eixo central que estrutura a história e também sua concepção de modernidade. O tempo histórico difere do tempo cósmico/físico  e, portanto, a história tem seu próprio tempo, que por sua vez, encontra-se relacionado com as experiências do homem e em sua percepção da tridimensionalidade temporal ( passado, presente e futuro).

Outra temática recorrente na atualidade em que nossa biosvirtual se estabelece de modo contumaz  é o impulso que a pandemia e o consequente isolamento tem dado para que as tecnologias digitais da comunicação e informação entrem definitivamente em nossas vidas. Educação à distância, home office , simplificação da vida, etc.. Mas essa realidade que projeta um possível futuro completamente integrado às tecnologias e ao mundo das plataformas digitais também nos traz uma angústia, um medo de futuro, de um futuro não mais enquanto esperança, mas enquanto desconhecido, visto que não é possível prevê-lo.

Todas essas falas nos remetem ao nosso cenário no Brasil nos dias atuais em que estamos já há algum tempo vivenciando uma suspensão, talvez não uma brecha no tempo, mas com certeza uma angústia coletiva, uma insegurança holística, um vazio onde as expectativas fogem do nosso horizonte. A virada de ano (2020-2021) nos trouxe uma alento de esperança, a vacina outra esperança, mas o desenrolar dos processos em torno da vacinação e a descoberta de novas variantes do novo coronavírus, nos fizeram retornar ao medo, visto que nosso desgoverno parece claramente ter uma estratégia de extermínio dos mais vulneráveis. Haverá futuro para um país onde 241 mil pessoas já morreram por COVID-19 em menos de um ano?

Voltando ao par  tempo x tecnologia comumente pensado neste momento pandêmico, por muitos gurus do marketing tecnológico  que trabalham em projeções de futuros possíveis, numa retomada retrotópica de uma ordem do tempo futurista de um paradigma da modernidade, numa visada distinta de Baumann, para quem um  desejo de passado ou uma retrotopia passou a se acentuar a partir do final do século XX quando os filhos  começaram a duvidar de que a sua vida seria melhor do que a dos pais e a  crença em um futuro melhor se desfez.

É nesse contexto que a pandemia se instaurou e trouxe consigo a inserção ubíqua da tecnologia entre nós, impondo ordens temporais individuais e coletivas, complexas, com a invasão do lar pela escola, pela empresa, pelo consultório médico.  O que por outro lado, tem acarretado em consequências nos limites entre o público e o privado. Do ponto de vista do tempo do trabalho, houve uma ruptura tanto de ordem concreta com o extrapolamento dos horários e cometimento de abusos por parte dos empregadores, como de ordem legal, visto que a lei ainda sofre ajustes. A tecnologia de projeção de futuro para o bem o estar social coletivo se transformou em instrumento de invasão pessoal e familiar trazendo angústia e medo a uma grande parte da população.

Por outro lado, nem todos estão incluídos. Em 2020, o sociólogo português, Boaventura de Sousa Santos, lançou um livrinho denominado A cruel pedagogia do vírus do qual já falamos neste espaço opinativo. Nesse livro, ele comenta e detalha como o vírus expõe as grandes e gritantes diferenças sociais. Fala sobre as populações vulneráveis, sobre as mulheres enquanto vítimas da violência doméstica e que não podem optar entre sofrer uma violência ou sair e ser infectada pelo vírus. Fala sobre os imigrantes, idosos, negros, etc.. E concentra uma boa parte argumentativa nas populações do sul global que não estando inseridas digitalmente, ou estando, parcialmente, não vivenciam a mesma experiência que as sociedades privilegiadas e inseridas digitalmente. Contingentes populacionais que necessitam se deslocar para o trabalho se expondo ao vírus todos os dias, porque  não podem parar, caso contrário suas famílias podem morrer de fome.

A relação dessas sociedades com o vírus é, de, quando atingidas de letalidade, de luto e dor, mas também de naturalização, visto que já vivenciam a morte pela violência, pelas doenças como a malária que mata milhões no mundo todos os anos. Um novo vírus é um novo inimigo, mas a vida de quem sobrevive precisa continuar. Porque o tempo  não para.

Essas experiências de vida distintas provocam diferentes experiências do tempo visto que o relacionamento tecnológico também diverge.
 
 
 

FGV

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