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Sexta-feira, 03 de maio de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

04/02/2022 - 09h02

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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

04/02/2022 - 09h02

Solidariedade, caridade, respeito e empatia

 

Minha mãe partiu no dia 08 de janeiro deste 2022 que desde bem antes já se anunciava difícil. Mal sabia eu que ele começaria com luto e dor e com um novo surto de coronavírus que tem atingido gravemente, sobretudo, uma legião de negacionistas não vacinados, além de milhares de crianças, a quem tem sido negado a vacina contra a Covid-19.
        
Mas hoje não falarei de desinformação, nem de negacionismo, falarei das lições da minha mãe.

Enquanto chorávamos sua partida ao final da missa de corpo presente na Igrejinha do Sagrado Coração de Jesus, em Picos, senti toda a energia de sua vida. Minha mãe foi aplaudida de pé pelos que ali estavam e isso me fez perceber de perto o quanto ela havia transformado muitas vidas ao longo de sua passagem. As pessoas que vinham falar conosco e muitas eu não conhecia, ou, não reconhecia, lembravam de sua bondade, de sua solidariedade e de sua dedicação aos pobres de seu lugar, de seu entorno. Alguns falavam que naquele dia, o mundo estava mais pobre, porque havia morrido quem cuidava dos pobres.

Na ânsia de mudar o mundo e mergulhar nos livros e nas ciências humanas e sociais, eu nunca parei para ver não só a beleza, mas a potência transformadora de seu trabalho que tem continuidade em sua irmã Remédios e em minha irmã Joana. Eu não percebi que para mudar o mundo devemos começar pelo nosso lugar.

Aos 23 anos minha mãe, Francisca Maria, ajudou a criar uma Associação de amparo aos pobres e lá permaneceu atuando por 60 anos. Mesmo com grandes limitações físicas nas últimas semanas de vida, nunca esqueceu de interceder pelos mais pobres.

De sua boca ouvi inúmeras vezes: _ fazer o bem sem olhar a quem! Ou seja, fazer o bem sem distinção, sem privilégios, sem discriminação, sem aporofobia, sem racismo, sem qualquer preconceito por quem vive em situação de rua ou foi dominado pelas drogas. Simplesmente fazer o bem porque quem tem fome, tem pressa. Seja qual for a sua fome.

De sua boca ouvi inúmeras vezes: _ quando tua mão direita estiver fazendo o bem, que tua mão esquerda não saiba. Referindo-se a importância da simplicidade e da ausência de publicidade para o que se faz. Fazer o bem por visibilidade e vaidade, em sua visão, invalidaria o gesto de caridade. Caridade entendida como amor ao próximo. Entendida como acolhida aos necessitados.

Fazer o bem não para ser bem-visto socialmente ou para se sentir bom e generoso, mas para efetivamente ajudar a quem necessita. O que significou levar muitos e muitos NÃOS ao longo de mais de 60 anos de arrecadação de alimentos e de cortes (tecidos) como ela bem chamava. Significou engolir em seco a raiva, quando a arrogância vinda da própria Igreja ameaçava o trabalho comunitário na Associação, assim como, vinda de pessoas que se julgavam poderosas em um nível de micropoder foucaultiano simplório, em que a riqueza ainda que pequena se sobressai frente a pobreza generalizada.

Pagar as contas das vilas onde vivem pessoas acolhidas pela Associação, fazer as doações mensais aos mais necessitados, nunca foi e nunca será tarefa fácil para todas e todos que procuram trabalhar porque tem a solidariedade como guia, porque não param para escolher a quem doar e para quem, cada vida importa.

A solidariedade que minha mãe viveu e plantou na Associação dos Pobres de Santo Antônio em Picos, cidade do sertão piauiense, castigada pela seca e onde a fome se fez presente e que agora retornou com grande força, embalada pelos desmandos do desgoverno atual, é uma solidariedade legítima de quem nasceu e viveu presenciando a desigualdade social e a necessidade de cada pessoa naquele lugar.

Na última vez em que a tive em meus braços, à cerca de um mês, perguntei sobre suas lembranças e ela me falou da importância das memórias de infância, quando junto com outras crianças ajudou a construir a Igreja Catedral de Nossa Senhora dos Remédios, ainda hoje o maior patrimônio arquitetônico do lugar, situada no vale do Guaribas. Cada tijolo que cada criança, brincando, carregava da beira do rio ao alto da igreja em construção, simbolizava o suor e a união de um povo em prol de um objetivo comum. Naquele tempo, dizia minha mãe:_ as pessoas não se estranhavam e não se odiavam. Havia respeito e solidariedade.

Obviamente que a história da caridade é carregada de poder hegemônico, mas este não era o caso da minha mãe e de sua escolha de vida. Professora do ensino fundamental da rede pública de ensino, se aposentou muito jovem e a partir de então dedicou-se totalmente a opção de seus vintes anos, qual seja: ­­ ajudar os mais necessitados.

Nesse sentido a empatia que praticava nunca foi somente a compreendida no sentido popular, como um colocar-se no lugar do outro, mas foi um aceitar o outro como ele é e reconhecer nele a humanidade frágil de qualquer um de nós. E assim fez toda a sua vida. Lembro quase como um sonho ou como uma outra vida, de muitos que batiam à nossa porta durante a nossa infância para pedir um prato de comida ou algum trocado para o dia. Clara, uma senhora magra, alta, em situação de rua e com algum problema de saúde mental era uma delas. Minha mãe jamais negou, nem negligenciou algum pedido.

Mas em verdade, a maior lição da minha mãe em vida e na morte, foi a humildade de nunca se colocar acima de ninguém. Suas grandes amigas eram pessoas simples e do povo. Sua melhor amiga era uma senhora que a sucedeu na Presidência da Associação e que veio a falecer três dias antes de sua morte, Dona Conceição, bondade em pessoa. Amigas inseparáveis na vida e na morte.

 Durante muito tempo em minhas visitas mensais, mamãe me levava para fazer compras na grande feira de Picos e nas lojas de departamentos da cidade. Invariavelmente, demorávamos caminhando em um sol escaldante, porque a cada dez passos, alguém nos parava para cumprimentá-la, para agradecê-la, para beijá-la e eu, na minha pequenez, me incomodava.

Jamais serei tão grande e ao mesmo tempo, tão humilde como minha mãe. Jamais serei tão generosa. Jamais serei tão solidária, mas tentarei seguir em seu caminho. Nunca discriminando o próximo por qualquer motivo que seja.

De um tempo em que o racismo, a misoginia, a hipocrisia e a arrogância sempre foram comuns no sertão brasileiro, conformando o ciclo de desigualdade, minha mãe lutou a seu modo, com suas ferramentas de amor ao próximo para transformar vidas.

Hoje me pergunto: _ quantas vidas a vida da minha mãe transformou? Quantas vidas que ela tocou transformaram outras vidas ao final? Não há uma conta possível porque se transformaram em infinitas e anônimas ao longo de mais de 60 anos de trabalho em prol dos mais necessitados. Trabalho continuado por muitas mulheres que se dedicam ao próximo, inclusive, minha tia e minha irmã.

Em um tempo atual em que a solidariedade é ridicularizada e perseguida, em que o respeito não está presente, em que a caridade é seletiva e não reconhece a maioria dos necessitados, em que a empatia não existe, espero que muitas Francisca(s) e muitos Francisco(s) consigam continuar seus trabalhos de formiguinha transformando seus entornos, seus lugares e muitas vidas.

Obrigada mamãe não apenas por nós, mas por cada um que passou em sua vida e obteve de você um sorriso, um carinho, um pão para matar a fome, uma cesta para alimentar a família, uma roupa para cobrir o corpo, um lençol para dormir.

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