De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no ano de 2016 cerca de 40 milhões de pessoas foram vítimas da escravidão moderna no mundo. Deste número, 25 milhões foram vítimas de trabalho forçado.
Em 2005 o relatório “Uma Aliança Global contra o Trabalho Forçado”, também da OIT, considerava o Brasil referência em todo o mundo no combate à escravidão. Tal relatório baseou-se no empenho do Estado brasileiro em resgatar por meio do Grupo Móvel de Fiscalização do Trabalho, somente entre os anos de 1995 e 2006, cerca de 22 mil trabalhadores em situação de trabalho escravo.
Indo contra tudo isso, foi publicada no Diário Oficial da União nesta segunda (16 de outubro) a Portaria nº 1.129/2017. Tal ato normativo, que dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, dificulta, em muito, a atuação do Ministério Público do Trabalho no combate ao trabalho escravo contemporâneo.
As definições anteriormente citadas, dispostas no art. 1º, incisos e alíneas, tentam dificultar a caracterização da condição análoga à de escravo. Veja-se o que define o inciso IV do art. 1º da referida Portaria:
Art. 1º.
[...]
IV - condição análoga à de escravo:
a) a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária;
b) o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico;
c) a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;
d) a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho;
O conceito de condição análoga à escravo dá outra conotação ao que dispõe o Código Penal brasileiro, nos termos do seu art. 149, senão vejamos:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I – contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
O que se pode deduzir é que a Portaria do Ministério do Trabalho afronta a legislação aplicável ao caso, sem falar em todas as definições que os Tratados Internacionais celebrados no âmbito da OIT veicularam em torno da definição de trabalho escravo contemporâneo (para citar alguns: convenções número 29, de 1930, e 105, de 1957 – ambas ratificadas pelo Brasil).
Tal afronta ao disposto no Código Penal e, certamente, aos Tratados internacionais celebrados e ratificados no Brasil, ensejam uma ilegalidade e inconstitucionalidade. Trata-se, portanto, de vício material que certamente não passará pelo crivo do controle de constitucionalidade. Isso significa dizer que tal Portaria, se não for revogada pelo Governo Temer, será tornada nula em razão de seu conteúdo não estar conforme a Constituição.
Os novos conceitos trazidos pela Portaria limitam-se a definir condições análogas ao trabalho escravo baseado tão somente no cerceamento de liberdade do cidadão, sendo, portanto um retrocesso em termos de conceitos.
O conceito de escravidão se relaciona a três épocas distintas: a) a escravidão clássica ou chattel; b) a escravidão pré-moderna; e c) a escravidão moderna ou contemporânea. E qual seria o conceito de “escravidão moderna”? Para Fernando César Costa Xavier, a escravidão moderna ou contemporânea “pode ser definida como restrição ou constrangimento, de forma ilícita e sistemática, sobre a condição econômica de alguém, comprometendo-lhe a existência social digna, ainda que sem envolver, necessariamente, restrição física ou violência”.
Veja-se que não é necessária a existência de restrição física ou violência. Contudo, a Portaria estabelece como um dos requisitos para a caracterização do trabalho em condições análogas a de escravo, nos termos da alínea “a” do inciso IV do art. 1º, “a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária”.
Segundo relatório da Relatora Especial sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, a necessária confluência de todos os requisitos caracterizadores da nova portaria promoverá, certamente, a impunibilidade de todos os grandes fazendeiros situados nas regiões que mais demandam trabalho escravo, quais sejam o Estado do Pará (48%), Mato Grosso (15%), Maranhão (8%) e Tocantins (7%),
De acordo com estudo promovido pela OIT, a escravidão contemporânea surge no Brasil em torno de algumas razões: analfabetismo, baixo índice de desenvolvimento (IDH) dos Estados e a busca por lucros fáceis pelos fazendeiros. Todos esses aspectos aliados à falta de liberdade dos trabalhadores e trabalhadoras de romperem o vínculo “empregatício” com o patrão, fazem com que casos como o da Fazenda Brasil Verde sejam parte de uma triste realidade.
No caso da Fazenda Brasil Verde, a Corte Interamericana de Direitos Humanos utilizou vários tratados e protocolos internacionais como subsídio para julgar o caso. Um deles, o Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra, declara a proibição “em qualquer momento ou lugar” da “escravatura e o tráfico de escravos, qualquer que seja a sua forma”.
Com efeito, através do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, lançado no governo Lula em 11 de março de 2003, foi criada uma das mais importantes iniciativas na luta contra o trabalho escravo: as chamadas “listas sujas”. Até o ano de 2006, cerca de 178 empresas foram inscritas nesta lista e tiveram como algumas das penalidades a proibição de receber recursos governamentais para o financiamento de seus empreendimentos.
É prejudicial para o combate ao trabalho escravo no Brasil que a Portaria nº 1.129/2017 venha a determinar que somente o Ministro do Trabalho possa incluir na “lista suja” os nomes das empresas que foram autuadas submetendo seus trabalhadores a condições degradantes e análogas à de escravo:
Art. 4º.
§1º A organização do Cadastro ficará a cargo da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), cuja divulgação será realizada por determinação expressa do Ministro do Trabalho.
Tal dispositivo dificulta, sem sombra de dúvida, a inclusão das empresas que fazem uso de trabalho forçado ou submetem trabalhadores a condições análogas à de escravo na “lista suja”
Antes, por meio do art. 5º da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH Nº 4 de 11/05/2016, revogado pela Portaria nº 1.129/2017, a organização e divulgação do cadastro de empresas incluídas na “lista suja” ficava a cargo da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), inserida no âmbito da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Previdência Social. Trata-se de órgão eminentemente técnico, livre de amarras políticas, inerentes a todo Ministro que devem “prestar contas” a quem lhe indica.
A Portaria nº 1.129/2017 vem, portanto, tornar retrógrada a atuação do Brasil no cenário nacional e internacional na luta contra o trabalho escravo. Tal dispositivo infelizmente dá base a índices alarmantes como o da existência de 40 milhões de trabalhadores em condições análogas à de escravo.
Diante do fato de que o trabalho escravo é a segunda atividade ilícita mais rentável no mundo (atrás apenas do tráfico de drogas) gerando cerca de 150 bilhões de dólares por ano, não é difícil afirmar que o Governo Temer, mais uma vez, está atuando de todas as formas para se manter no poder, necessitando angariar apoio da bancada ruralista diante da 2ª denúncia oferecida pela Procuradoria Geral da República e que põe em risco seu governo.
O Poder Judiciário, ao longo dos anos, desenvolveu um entendimento progressista e, ao julgar o Inquérito nº 3.412, deixou claro que é “desnecessário haver violência física para a configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo. É preciso apenas a coisificação do trabalhador, com a reiterada ofensa a direitos fundamentais, vulnerando a sua dignidade como ser humano”. Logo, não é possível compartilhar do entendimento invocado pela Portaria, pois tenta esvaziar o caráter garantista do entendimento do STF.
Contudo, importa ressalvar que por mais que pesem as flagrantes inconstitucionalidades contra a referida portaria, e por mais que se possa questioná-las no judiciário, nessa conjuntura de graves retrocessos, a mobilização da classe trabalhadora é crucial para barrar mais esse ataque.
-------------------------
Por Johann Schuck, advogado (OAB/PI 14.977) e membro do SLPG.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião desta página, se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.