Quando a vista ainda me permitia distinguir uma mulher de um vaso de samambaias, recebi uma cantada insólita, para dizer o mínimo. Numa manhã qualquer, eu e um punhado de amigos proseávamos na casa de um velho poeta. De repente, aparece uma cidadã bastante maltratada pela ação do tempo. Risonha, alegre, falastrona, monopolizou as atenções. Lá pelas tantas, sem mais nem menos, pegou minha mão e disparou: “Se eu fosse mais nova, seria sua amante”. Antes que eu pudesse me refazer do susto, acrescentou: “Só os feios são bons amantes. Os bonitos, empavonados, pretensiosos, julgam-se réplicas de Apolo e sempre exigem mais. Exigem tudo sem dar nada em troca. Os feios, não. Desmancham-se em carinhos, delicadezas e agradecem cada migalha de amor como se fosse um manjar dos céus”. Falava com tamanha convicção que parecia ter sido amante de todos os feios do mundo. Rimos um bocado e cada um foi para seu mundinho. Ela, manquitolando pela vida; eu, carregando minha feiura sem maiores traumas.
Lembrei-me deste incidente ao ouvir a arenga de Fabrício Carpinejar no SALIPI. Ao contrário da maioria dos feios, o escritor faz questão de realçar a própria feiura e, com incrível esperteza, tira proveito dela. Entre outras coisas, afirmou: “A grande revelação de minha vida foi descobrir-me feio. O feio já nasce predestinado a ser objeto das atenções. É notado em toda parte, é especial. Tenho pena dos homens bonitos: são preguiçosos, pretensiosos, não precisam fazer nada para serem amados. Os feios desenvolvem habilidades para se tornarem fascinantes e encantadores”. Enquanto falava, as meninas da plateia desmanchavam-se em risos e gritinhos, um verdadeiro frisson. Da porta do auditório, uma garota não se conteve: “Lindo! Fofo!”. Impávido, o feioso de carteirinha continuou sua conversa fiada, pontilhando-a de expressões de gosto duvidoso e nenhuma consistência. Sucesso absoluto. Um parêntese: Fabrício Carpinejar é bom poeta e excelente cronista.
Enquanto ele falava, uma menina bonita, com idade para ser minha neta, não tirava os olhos de mim. Fiquei um tantinho constrangido, mas me segurei. Terminada a palestra do feioso, a menina aproximou-se de mim com um exemplar de Pétalas na mão.Com aquela graça que só as mulheres possuem, pediu-me um autógrafo. Rabisquei alguma coisa e preparei-me para sair. Ela, armada com um daqueles celulares que falam até com Deus, pediu-me para fazer um selfie comigo.. Não satisfeita, afirmou: “Sou tua fã desde que me nasceram os primeiros dentes.” E fez questão de exibi-los num sorriso pleno de encantamento. Beijou o exemplar autografado e misturou-se à multidão.
Foi aí que me lembrei de uma história que M. Paulo Nunes não se cansa de contar: Chaplin, octogenário, contracenava com Sophia Loren no filme “A condessa de Hong Kong”, produzido por ele. Numa das cenas, não se conteve. Olhou demoradamente para a exuberante atriz e queixou-se: “Ah os meus 75 anos!”. Por esta e outras, irmãos e irmãzinhas, eu vos asseguro: envelhecer dói!
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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