O sistema mudou completamente. Virou do avesso. O fato de Bolsonaro não ir ao debate da Globo (e na quase maioria dos outros), fazer lives e entrevistas em outros canais, não ter tempo nenhum de propaganda na TV, apanhar na mídia tradicional e, ainda assim, ser o líder nas pesquisas, já deveria ser evidência suficiente disso.
Não consigo evitar de pensar que aqueles candidatos tagarelando lá no debate, com seus paletós de sempre, seus púpitos cenográficos e cronômetros regrados, se tornaram algo jurássico, diante do novo esquema. O eleitor de hoje é, em geral, um moleque da turma do fundão, dos mais desinteressados e inconsequentes. Bolsonaro pode ganhar essas eleições com memes e terrorismo via whatsapp. É ali o campo agora, onde o discurso pode ser qualquer coisa (contanto que agrade por um lado e aterrorize para o outro).
Quando vejo pessoas achando que o despreparo dele em debates vai levá-lo ao fracasso, ou citando números de aprovação e rejeição nas pesquisas, conjecturas complexas, comparações com eleições anteriores, só consigo pensar que é um grande equívoco usar essas medidas antiquadas. Essa é a primeira eleição no Brasil onde esse novo modelo, quase animalesco, domina. Sequer a linguagem sobreviveu tal como a conhecemos (alguém aí conseguiu manter uma conversa lógica com um eleitor de Bolsonaro?).
O meme levado a sério já é a falência do discurso. A linguagem tomou caráter animalesco, é só força. Mesmo o conceito de "fake news" me parece obsoleto, ou carecer de revisão. As palavras e imagens que se espalham por redes sociais não têm função de formar discurso, não são nem mesmo "news", são unicamente gestos de força. Como gritos de torcida. Ninguém precisa "acreditar" exatamente em todas as palavras berradas, apenas gostar de pertencer ao grupo que tem o berro mais alto.
Esqueçam as medidas e referências que serviram até 2014. Eu não sei como esses novos esquemas poderão ser confrontados no futuro, mas não é com esses referenciais. A entrevista que o Michael Moore deu para o Democracy Now, falando sobre a vitória do Trump é fantástica para compreender esse momento (link nos comentários). O eleitor de Trump não acredita nele exatamente, não concorda ou morre de amores por ele, só ama poder chegar nas urnas e jogar um coquetel molotov no sistema que o ferrou até agora. E se esse eleitor pode se identificar com uma figura tão inadequada quanto ele, mas que tem o poder de sobrepujar e debochar do sistema, um tanto melhor.
Quando Bolsonaro derrapa diante de uma pergunta difícil de economia, isso não é uma derrota dele, ao contrário do que muita gente pensa. Porque o eleitor dele também não entendeu a pergunta. A diferença é que agora não precisa ficar envergonhado por isso, pode tirar a desforra e se sentir forte. É uma lógica sórdida de desforra dos perdedores, em grande parte, o que vem acontecendo. Das pessoas que perderam todas as últimas eleições, que foram ridicularizadas em conversas sobre política, que não ganharam destaque nos últimos anos nesse campo, que nunca foram muito elogiadas no quesito sensatez, que viram suas posturas (machistas, homofóbicas, etc.) serem consideradas inadequadas, que deixaram de ser contempladas a favor de outros grupos sociais. Eles agora têm seu herói, o fracassado que, sem grandes esforços de articulação, revida e leva a melhor. Sabe aquele conceito de "representatividade importa"? Esse é seu evil twin.
É preciso repensar até o uso da linguagem. Descobrir o que funciona, e não é a lógica (essa já foi pelos ares há muito tempo), não é a veracidade (os "fatos" agora podem ser escolhidos) e nem a coerência (essa, então, já está a sete palmos abaixo do chão). É um monstro de roupa nova, que a gente tem que descobrir como controlar. A raposa a dizer de novo - e de novo e de novo - que o céu vai desabar, para que as galinhas escolham ir até a toca dela. Como lidar quando as galinhas é que escolhem isso e nada tira da cabeça delas que o céu vai cair?
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Rafael Gallo é escritor, autor de "Rebentar" (Prêmio SP de Literatura) e "Réveillon e outros dias" (Prêmio Sesc de Literatura).
Não consigo evitar de pensar que aqueles candidatos tagarelando lá no debate, com seus paletós de sempre, seus púpitos cenográficos e cronômetros regrados, se tornaram algo jurássico, diante do novo esquema. O eleitor de hoje é, em geral, um moleque da turma do fundão, dos mais desinteressados e inconsequentes. Bolsonaro pode ganhar essas eleições com memes e terrorismo via whatsapp. É ali o campo agora, onde o discurso pode ser qualquer coisa (contanto que agrade por um lado e aterrorize para o outro).
Quando vejo pessoas achando que o despreparo dele em debates vai levá-lo ao fracasso, ou citando números de aprovação e rejeição nas pesquisas, conjecturas complexas, comparações com eleições anteriores, só consigo pensar que é um grande equívoco usar essas medidas antiquadas. Essa é a primeira eleição no Brasil onde esse novo modelo, quase animalesco, domina. Sequer a linguagem sobreviveu tal como a conhecemos (alguém aí conseguiu manter uma conversa lógica com um eleitor de Bolsonaro?).
O meme levado a sério já é a falência do discurso. A linguagem tomou caráter animalesco, é só força. Mesmo o conceito de "fake news" me parece obsoleto, ou carecer de revisão. As palavras e imagens que se espalham por redes sociais não têm função de formar discurso, não são nem mesmo "news", são unicamente gestos de força. Como gritos de torcida. Ninguém precisa "acreditar" exatamente em todas as palavras berradas, apenas gostar de pertencer ao grupo que tem o berro mais alto.
Esqueçam as medidas e referências que serviram até 2014. Eu não sei como esses novos esquemas poderão ser confrontados no futuro, mas não é com esses referenciais. A entrevista que o Michael Moore deu para o Democracy Now, falando sobre a vitória do Trump é fantástica para compreender esse momento (link nos comentários). O eleitor de Trump não acredita nele exatamente, não concorda ou morre de amores por ele, só ama poder chegar nas urnas e jogar um coquetel molotov no sistema que o ferrou até agora. E se esse eleitor pode se identificar com uma figura tão inadequada quanto ele, mas que tem o poder de sobrepujar e debochar do sistema, um tanto melhor.
Quando Bolsonaro derrapa diante de uma pergunta difícil de economia, isso não é uma derrota dele, ao contrário do que muita gente pensa. Porque o eleitor dele também não entendeu a pergunta. A diferença é que agora não precisa ficar envergonhado por isso, pode tirar a desforra e se sentir forte. É uma lógica sórdida de desforra dos perdedores, em grande parte, o que vem acontecendo. Das pessoas que perderam todas as últimas eleições, que foram ridicularizadas em conversas sobre política, que não ganharam destaque nos últimos anos nesse campo, que nunca foram muito elogiadas no quesito sensatez, que viram suas posturas (machistas, homofóbicas, etc.) serem consideradas inadequadas, que deixaram de ser contempladas a favor de outros grupos sociais. Eles agora têm seu herói, o fracassado que, sem grandes esforços de articulação, revida e leva a melhor. Sabe aquele conceito de "representatividade importa"? Esse é seu evil twin.
É preciso repensar até o uso da linguagem. Descobrir o que funciona, e não é a lógica (essa já foi pelos ares há muito tempo), não é a veracidade (os "fatos" agora podem ser escolhidos) e nem a coerência (essa, então, já está a sete palmos abaixo do chão). É um monstro de roupa nova, que a gente tem que descobrir como controlar. A raposa a dizer de novo - e de novo e de novo - que o céu vai desabar, para que as galinhas escolham ir até a toca dela. Como lidar quando as galinhas é que escolhem isso e nada tira da cabeça delas que o céu vai cair?
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Rafael Gallo é escritor, autor de "Rebentar" (Prêmio SP de Literatura) e "Réveillon e outros dias" (Prêmio Sesc de Literatura).
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