Facebook
  RSS
  Whatsapp
Quinta-feira, 25 de abril de 2024
Colunas /

Editorial

Editorial

contato@acessepiaui.com.br

11/01/2019 - 10h49

Compartilhe

Editorial

contato@acessepiaui.com.br

11/01/2019 - 10h49

Bolsonaro é fruto do conservadorismo liberal do homem médio

O homem médio é o tipo social incapaz de se manter em posições privilegiadas ou a elas ascender sem o peso das estruturas que reproduzem a tradição.

Como um homem médio se torna um “mito” para milhões de brasileiros?

 Como um homem médio se torna um “mito” para milhões de brasileiros?

Análises recentes afirmam que a eleição de Jair Bolsonaro significou a ascensão daquele que Angela Alonso chamou de “homem comum” (Folha de S.Paulo, 18/11/2018) e Eliane Brum de “homem mediano” (El País, 04/01/2019). Em sentido próximo, chamaremos aqui esse tipo social de homem médio e ofereceremos uma explicação para o fenômeno que também dê conta das razões do êxito eleitoral do conservadorismo liberal no país.

Recusado qualquer sentido pejorativo, essa caracterização é sociologicamente adequada se o objetivo é compreender o perfil de parte da base social e das lideranças que vocalizam as ideias do novo governo. Bolsonaro seria esse homem médio, um indivíduo sem nenhuma excepcionalidade, “um homem parecido com seu tio ou seu primo”, como afirma Brum.

Como um homem médio se torna um “mito” para milhões de brasileiros? Embora a base eleitoral de Bolsonaro seja mais ampla em razão do antipetismo, entendemos que aquela fração que o identifica como “mito” – ou melhor, que se identifica com o “mito” – compartilha com ele uma vida nada excepcional. Veem em Bolsonaro a redenção para um cotidiano que se tornou mais difícil recentemente, seja pelos impactos da retração econômica e seus efeitos sobre emprego e renda a partir de 2014, seja pelo alargamento de direitos e sua ampliação para setores historicamente marginalizados, algo que ocorreu nos marcos da ordem constitucional de 1988 e se intensificou no ciclo petista, pavimentando um projeto de fortalecimento da cidadania no país. Tanto a retração econômica quanto o alargamento de direitos significaram uma competição mais acirrada por bens sociais, como renda e educação, uma vez que, de um lado, houve queda da oferta e, de outro, aumentou-se a quantidade de pessoas competindo por esses bens. A vida do homem médio tornou-se mais difícil.

O que caracteriza, enfim, o homem médio? Numa resposta sintética: é o tipo social incapaz de se manter em posições privilegiadas ou a elas ascender sem o peso das estruturas que reproduzem a tradição. Tendo de se submeter a mecanismos de competição e seleção – seja no mercado ou em concursos públicos – o homem médio não pode prescindir da inércia para encontrar formas seguras de sobrevivência e satisfação das expectativas. A inércia de um mundo fechado aos conflitos de classe, gênero, raça e geração, por exemplo, torna seu cotidiano estável e seguro e, desse modo, passível de ser intelectualmente elaborado sem maiores intercorrências.

Esse tipo social médio não é exclusivo das classes médias, nem se reduz apenas aos homens, embora aí esteja sua expressão mais acabada. O sentimento de ameaça e fragilidade talvez seja o ponto-chave de sua amplitude e transversalidade como fenômeno social. Sua renda, seu título acadêmico e seu padrão de consumo parecem sempre insuficientes quando contrastados com pares mais bem posicionados, cujas trajetórias de classe são mais estáveis. É alguém que está em determinado espaço sem pertencer plena e integralmente àqueles modos de viver, consumir, educar-se e assim por diante. Ao mesmo tempo, a classe inferior à sua posição o assombra como o retrato de Dorian Gray, como reveladora da face que não quer ver. Do desprezo implícito dos pares ao ressentimento como força construtora fundamental de sua visão de mundo, o medo mobiliza o homem médio e faz do apego à tradição a estratégia fundamental para sua reprodução social.

Longe de inventar novas tradições, sua visão de mundo integra um processo histórico que marca a formação nacional, isto é, está enredada nos fios que sustentam a dominação patriarcal e capitalista no país, tão bem condensada no namoro, que agora virou casamento, entre Bolsonaro e Paulo Guedes. Se a disputa eleitoral quebrou regras tradicionais do jogo político sem a qual a ascensão do baixo clero seria difícil, os primeiros dias do novo governo indicam a manutenção de estratégias da política tradicional, como expresso no acordo com Rodrigo Maia (DEM) para a presidência da Câmara dos Deputados. Não sendo, muitas vezes, o herdeiro imediato da tradição patriarcal ou o herói do capitalismo brasileiro, o homem médio ascendeu a posições de poder ímpares no atual governo com a promessa de “reencontro da nação com seu destino” o que, neste momento, parece significar sobretudo as possibilidades simbólicas de existência social de um indivíduo que não pode conviver, competir ou existir em meio às diferenças.

Políticas públicas, como cotas sociais e raciais, intervieram diretamente, e de modo desestabilizador, na inércia da reprodução social do homem médio. Para a manutenção dessa inércia, a limitação da competição é decisiva. Por isso, certa tradição – expressa nos valores privados da ordem familiar e religiosa – permite ao homem médio ressignificar mérito num sentido muito particular, tornando-o sinônimo de esforço em geral no trabalho e merecimento derivado do que ele vê como sua boa conduta moral. Não à toa, não parece ser contraditório a esse significado particular de meritocracia um governo composto em sua maioria por pessoas do baixo clero, nem sequer reconhecidas como legítimas e qualificadas em áreas das quais, em tese, deveriam representar liderança.

Dito de outro modo: como não vive num vazio social normativo, seu conservadorismo precisou prestar contas com o princípio legítimo de justificação liberal das desigualdades: os que vencem, deveriam fazê-lo exclusivamente pelo mérito pessoal. Problema: em sua esmagadora maioria, só estão onde estão por terem nascido de uma forma e não de outra. É por isso que essa questão precisa se apresentar, necessariamente, como disputa cultural em prol do valor das “pessoas de bem”, “homens de família” que merecem o lugar em que estão por um traço de caráter, algo também pessoal ou familiar.

A alegação de que o mundo ficou chato em razão da suposta hegemonia do “politicamente correto” oculta uma dificuldade, muitas vezes sincera, em saber como proceder numa esfera pública que é, de fato, mais complexa e com demandas de novo tipo. As brincadeiras e piadas, que antes conferiam uma possibilidade de participar do mundo e eram feitas sem maiores constrangimentos, passaram a ser questionadas, até dentro de casa. Mesmo sem saber por que não poderia mais fazê-las ou discordando das críticas fomentadas pelos dissidentes, o homem médio reagiu à mudança. Parafraseando Marx, desprovido das condições de fazer uso da “arma da crítica” em esferas socialmente legitimadas, o homem médio recorreu à nova esfera pública das redes sociais e ao mito que prometia usar a “crítica das armas”. Violência, tal como já naturalizado no cotidiano, deveria gerar compreensão.

O mundo precisa voltar a ser politicamente indivisível (“Brasil acima de tudo”), “sexualmente” binário (“meninos de azul, meninas de rosa”), intelectualmente raso (“sem mimimi” se torna argumento) ou desprovido de empatia e alteridade (crítica ao “vitimismo”).

Novamente, não se trata de qualquer incapacidade de ordem natural. Num contexto de financeirização da economia e esgarçamento do tecido social promovido pela crescente mercantilização de todas as esferas da vida, o liberalismo existente joga pesadamente contra qualquer direito social que busque atenuar a instabilidade e a concorrência de mercado. Postula que, assim, a eficiência econômica reinará. Porém, suas promessas não têm muito de concreto a entregar a esses grupos – a não ser dobrar a aposta de modo quase religioso via discurso do empreendedorismo. Não oferece, assim, alternativa à rede de proteção familiar, mas recoloca a família como unidade social central.

Da educação ao cuidado com os velhos, volta a ser a família – e não o Estado – o ente responsável. Dessa forma, o liberalismo se encontra com o conservadorismo e ambos dão-se as mãos para valorizar a família. Não à toa, para atingir as classes populares, o liberalismo precisa de igrejas – a base moral da família – que, por sua vez, vê na defesa liberal do empreendedorismo um instrumento para lucrar no mercado de salvação das almas. Instrumentalizando o debate em torno da corrupção num registro moral seletivo, a estratégia eleitoral foi exitosa.

É certo que o eleitor que apertou 17 é mais amplo e heterogêneo que o tipo aqui delineado. Como também é certo que frações da classe dominante – também chamadas de “elites” – se beneficiarão do programa econômico liberal acompanhado, como tantas outras vezes na história, do braço armado e conservador. A redução de direitos sociais, trabalhistas e de impostos é o dote que faz brilhar os olhos das frações dominantes que celebram o casamento do militar com o economista liberal.

Contudo, é preciso apontar que a base social que irá até o fim na defesa do mito o fará em nome do suposto mérito para defender a inércia, reposicionando a vida privada e os valores patriarcais no epicentro da vida republicana brasileira. A possibilidade de engajamento e participação nas redes sociais continuará mantendo a percepção de que estão sendo protagonistas, enfim, de algo maior, excepcional. Porém, promessas liberais e fake news não irão garantir condições dignas de vida aos que foram jogados na informalidade, no pequeno negócio como estratégia de sobrevivência ou ao conjunto diverso de indivíduos que sofre a opressão cotidiana do machismo e da homofobia. É apenas dessa tensão que a retomada de um projeto socialmente inclusivo e democrático, até como forma de civilização do homem médio, pode ressurgir.

---------------------
Mariana Chaguri, Sávio Cavalcante e Michel Nicolau Netto são professores do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp). Reproduzido do site da Revista Época. 

R7.com

Comentários