Nessa semana – a Semana Santa – termina a Campanha da Fraternidade de 2019, promovida todo ano pela CNBB, e que teve como tema “Fraternidade e Políticas Públicas”. Tema muito oportuno nesse momento que o Brasil vive; tema importante em toda discussão sobre desenvolvimento.
O novo governo, apesar de sua heterogeneidade e desarticulação e de seu modo espetaculoso de atuar (via redes sociais) tem emitido sinais de que “quer desmontar e mudar” muita coisa. Na área econômico-social, a diretriz tem sido “menos Estado e mais Mercado”. Ora, políticas públicas têm tudo a ver com as mediações necessárias entre essas duas “instituições básicas da modernidade” (como mostra o sociólogo inglês Anthony Giddens).
Preliminarmente, é preciso limpar o terreno das polarizações e do provincianismo que prejudicam o bom debate. Implementar políticas públicas é um dos papéis dos estados modernos no mundo inteiro; não existe só no Brasil, não é invenção de um governo, não é “coisa” da esquerda ou de um partido. Mestrados e Doutorados, revistas especializadas, programas de organismos internacionais estão aí. Felizmente!
É bom olhar as coisas numa perspectiva histórica: como tem evoluído o papel do Estado-nação desde o Tratado de Westfália de 1748, que consagrou o sistema de estados soberanos? E numa perspectiva comparativa: como estão sendo concebidas e implementadas as políticas públicas em outros países, atualmente?
Os Estados que, desde seu surgimento, se firmaram como responsáveis pela defesa externa e manutenção de ordem interna, desde o mercantilismo no século XVI, também foram chamados a promover a “riqueza da Nação”. E desde que a revolução industrial e a urbanização gerou “uma sociedade de assalariados” teve que se preocupar com a “questão social”, entendida como condições de vida e de trabalho, emprego e segurança no desemprego e na velhice. Com a Encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII, de 1891, a Igreja começou a participar deste debate.
As revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) transformaram súditos em cidadãos. E a temática dos direitos civis e políticos ganhou status constitucional. De outro lado, o movimento sindical foi o instrumento inicial da luta por melhor remuneração, melhores condições de trabalho e maior segurança. A combinação entre classe social e cidadania (ver a clássica contribuição e T. H. Marshall) colocou na ordem do dia a necessidade da democracia social, produzindo a terceira geração de direitos: os direitos sociais. Surgiram os partidos de trabalhadores e socialistas, avançou-se na legislação social. Ao Estado foi atribuído o papel de formulador e gestor de políticas públicas (econômicas e sociais) Essa é a tradição europeia.
A tradição norte-americana sofreu influência desse amplo movimento amplo. Mas, por inspiração de Woodrow Wilson, passou a defender a administração científica e técnica do Estado para dar respostas aos problemas das sociedades complexas e de grandes contingentes demográficos. A gestão burocrática não dava mais conta do recado; era preciso ter um serviço público profissionalizado; substituir a burocracia pela “tecnocracia”. Essa é a outra vertente da consolidação da políticas públicas como papel dos estados modernos.
Por fim, com a Constituição da República de Weimer na Alemanha em 1919, ao lado dos Títulos “Da Organização do Estado” e “Dos Direitos do Cidadão”, as constituições passaram a ter o Título “Da Ordem Econômica e Social”. Inclusive nas constituições brasileiras desde 1934. As políticas públicas de consolidaram como “políticas de estado”.
A sociedade brasileira, desde a proclamação da República e sobretudo depois da Revolução de 1930, vem tentando consolidar um estado moderno no país, com avanços golpistas e retomadas democráticas. Ainda não fizemos todo o ajuste de contas com um “estado sem povo” herdado da Colônia, nem com a sociedade extremamente desigual herdada da escravidão. Daí a fragilidade e a vulnerabilidade de nossas políticas públicas que ainda são mais políticas de governo do que políticas de estado. Daí as pretensões de “desmontar” as conquistas por parte de alguns governos, como é o caso do atual.
É isso que está em jogo hoje no Brasil. É sobre esse processo que a Campanha da Fraternidade nos dá oportunidade de pensar. A crise brasileira precisa ser resolvida pela continuidade do avanço da modernidade e da democracia; e não pelo retrocesso histórico do conservadorismo e do autoritarismo.
Colocar a questão como uma opção entre Estado e Mercado é um equívoco, é uma visão limitada ou distorcida, pois exclui o elemento que permite fazer a mediação entre as duas instituições modernas: a Sociedade.
A Sociedade é constituída por Pessoas, Famílias, Grupos e Classes Sociais, Instituições. As pessoas não podem ser reduzidas a mão-de-obra, consumidores, contribuintes, empresários ou produtores. As pessoas são Cidadãs e Cidadãos; a Cidadania é a expressão política da dignidade da pessoas humana. É por meio da disputa política democrática que as negociações são feitas, os consensos são construídos, as políticas públicas são definidas.
O Estado moderno – ainda uma penosa construção no Brasil – vive em meio a tensões estruturais: 1) é expressão de uma comunidade política, fundada num pacto social e constitucional (soberania popular); 2) é garantia da soberania territorial e representação no sistema internacional de estados; 3) é mantenedor da ordem interna e provedor da justiça e garantidor dos direitos.
Mas é também regulador e/ou indutor da atividade econômica (políticas públicas econômicas); mediador dos negociações entre os setores e movimentos sociais (políticas públicas sociais); prestador de serviços públicos e sociais (implementação de políticas públicas). E, para responder a um novo desafio, todo Estado é hoje regulador da sustentabilidade ambiental.
Evidentemente, a comunidade política nacional precisa de um forte grau de solidariedade. Só existe comunidade se existe a consciência do “Nós”, apesar dos conflitos de interesse, das divergências políticas e ideológicas. Sem a consciência do “Nós” a convivência respeitosa e civilizada está constantemente ameaçada.
O lema da Revolução Francesa era “Libereté, Égalité, Fraternité”; a palavra fraternidade foi substituída por solidariedade que tem uma conotação mais laica. A Igreja vem nos lembrar que solidariedade é a expressão política da fraternidade!
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Antonio José Medeiros - Sociólogo, professor aposentado da UFPI
O novo governo, apesar de sua heterogeneidade e desarticulação e de seu modo espetaculoso de atuar (via redes sociais) tem emitido sinais de que “quer desmontar e mudar” muita coisa. Na área econômico-social, a diretriz tem sido “menos Estado e mais Mercado”. Ora, políticas públicas têm tudo a ver com as mediações necessárias entre essas duas “instituições básicas da modernidade” (como mostra o sociólogo inglês Anthony Giddens).
Preliminarmente, é preciso limpar o terreno das polarizações e do provincianismo que prejudicam o bom debate. Implementar políticas públicas é um dos papéis dos estados modernos no mundo inteiro; não existe só no Brasil, não é invenção de um governo, não é “coisa” da esquerda ou de um partido. Mestrados e Doutorados, revistas especializadas, programas de organismos internacionais estão aí. Felizmente!
É bom olhar as coisas numa perspectiva histórica: como tem evoluído o papel do Estado-nação desde o Tratado de Westfália de 1748, que consagrou o sistema de estados soberanos? E numa perspectiva comparativa: como estão sendo concebidas e implementadas as políticas públicas em outros países, atualmente?
Os Estados que, desde seu surgimento, se firmaram como responsáveis pela defesa externa e manutenção de ordem interna, desde o mercantilismo no século XVI, também foram chamados a promover a “riqueza da Nação”. E desde que a revolução industrial e a urbanização gerou “uma sociedade de assalariados” teve que se preocupar com a “questão social”, entendida como condições de vida e de trabalho, emprego e segurança no desemprego e na velhice. Com a Encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII, de 1891, a Igreja começou a participar deste debate.
As revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) transformaram súditos em cidadãos. E a temática dos direitos civis e políticos ganhou status constitucional. De outro lado, o movimento sindical foi o instrumento inicial da luta por melhor remuneração, melhores condições de trabalho e maior segurança. A combinação entre classe social e cidadania (ver a clássica contribuição e T. H. Marshall) colocou na ordem do dia a necessidade da democracia social, produzindo a terceira geração de direitos: os direitos sociais. Surgiram os partidos de trabalhadores e socialistas, avançou-se na legislação social. Ao Estado foi atribuído o papel de formulador e gestor de políticas públicas (econômicas e sociais) Essa é a tradição europeia.
A tradição norte-americana sofreu influência desse amplo movimento amplo. Mas, por inspiração de Woodrow Wilson, passou a defender a administração científica e técnica do Estado para dar respostas aos problemas das sociedades complexas e de grandes contingentes demográficos. A gestão burocrática não dava mais conta do recado; era preciso ter um serviço público profissionalizado; substituir a burocracia pela “tecnocracia”. Essa é a outra vertente da consolidação da políticas públicas como papel dos estados modernos.
Por fim, com a Constituição da República de Weimer na Alemanha em 1919, ao lado dos Títulos “Da Organização do Estado” e “Dos Direitos do Cidadão”, as constituições passaram a ter o Título “Da Ordem Econômica e Social”. Inclusive nas constituições brasileiras desde 1934. As políticas públicas de consolidaram como “políticas de estado”.
A sociedade brasileira, desde a proclamação da República e sobretudo depois da Revolução de 1930, vem tentando consolidar um estado moderno no país, com avanços golpistas e retomadas democráticas. Ainda não fizemos todo o ajuste de contas com um “estado sem povo” herdado da Colônia, nem com a sociedade extremamente desigual herdada da escravidão. Daí a fragilidade e a vulnerabilidade de nossas políticas públicas que ainda são mais políticas de governo do que políticas de estado. Daí as pretensões de “desmontar” as conquistas por parte de alguns governos, como é o caso do atual.
É isso que está em jogo hoje no Brasil. É sobre esse processo que a Campanha da Fraternidade nos dá oportunidade de pensar. A crise brasileira precisa ser resolvida pela continuidade do avanço da modernidade e da democracia; e não pelo retrocesso histórico do conservadorismo e do autoritarismo.
Colocar a questão como uma opção entre Estado e Mercado é um equívoco, é uma visão limitada ou distorcida, pois exclui o elemento que permite fazer a mediação entre as duas instituições modernas: a Sociedade.
A Sociedade é constituída por Pessoas, Famílias, Grupos e Classes Sociais, Instituições. As pessoas não podem ser reduzidas a mão-de-obra, consumidores, contribuintes, empresários ou produtores. As pessoas são Cidadãs e Cidadãos; a Cidadania é a expressão política da dignidade da pessoas humana. É por meio da disputa política democrática que as negociações são feitas, os consensos são construídos, as políticas públicas são definidas.
O Estado moderno – ainda uma penosa construção no Brasil – vive em meio a tensões estruturais: 1) é expressão de uma comunidade política, fundada num pacto social e constitucional (soberania popular); 2) é garantia da soberania territorial e representação no sistema internacional de estados; 3) é mantenedor da ordem interna e provedor da justiça e garantidor dos direitos.
Mas é também regulador e/ou indutor da atividade econômica (políticas públicas econômicas); mediador dos negociações entre os setores e movimentos sociais (políticas públicas sociais); prestador de serviços públicos e sociais (implementação de políticas públicas). E, para responder a um novo desafio, todo Estado é hoje regulador da sustentabilidade ambiental.
Evidentemente, a comunidade política nacional precisa de um forte grau de solidariedade. Só existe comunidade se existe a consciência do “Nós”, apesar dos conflitos de interesse, das divergências políticas e ideológicas. Sem a consciência do “Nós” a convivência respeitosa e civilizada está constantemente ameaçada.
O lema da Revolução Francesa era “Libereté, Égalité, Fraternité”; a palavra fraternidade foi substituída por solidariedade que tem uma conotação mais laica. A Igreja vem nos lembrar que solidariedade é a expressão política da fraternidade!
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Antonio José Medeiros - Sociólogo, professor aposentado da UFPI
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