Até meados da década de 1980, para os que não tinham pedigree, o melhor programa nas manhãs de domingo, em Teresina, era um bordejo pelas coroas do Parnaíba. Situadas no meio de um rio limítrofe, eram uma espécie de território livre, com uma única lei: deixa rolar. Sem a presença de “autoridades”, as coisas se ajeitavam naturalmente. Polícia, ou melhor, bombeiros só quando alguém se afogava. No comando do “Vôlei-Bar”, o Nego Walter traduzia bem o pedaço. Quando lhe perguntavam se as coroas pertenciam ao Piauí ou ao Maranhão, respondia com um sorriso maroto: “diambas as partes...
Por volta das dez horas, as coroas fervilhavam: cada palmo daquele chão escaldante era disputado no grito e, às vezes, no tapa. Os peladeiros, que praticamente moravam ali, adonavam-se das melhores fatias. A lei que rege as peladas é universal: do pescoço pra baixo, tudo é canela. Entre os peladeiros, alguns eram conhecidos: Caio de Timon, Mão-na-faca, Cabinha, Zé de Fátima, Dedé da Múmia, Paulo, Beto, Pezão, Pompeu, Carlitos, entre outros.
Por volta do meio-dia, chegava a Turma do pagode. Ai, rolavam sambas manjados, batucada, caipirinha, piaba frita e (por que não dizer?) generosos baseados...
Casais de namorados, acoitados pelas águas barrentas do rio, pinavam, indiferentes ao rugir da turba. Ninguém se metia com a vida de ninguém. Os vendedores ambulantes circulavam por toda parte. Vendiam quase tudo: melancia, milho assado, picolé amazonas, dim-dim...
Por volta das 16 horas, apareciam as meninas “prestativas”. Dependendo do acerto, faziam qualquer coisa, exceto beijar na boca. Bêbados, escornados, espalhavam-se pelas areias. Firmes e irremovíveis, os peladeiros continuavam chutando bolas e adversários. Depois das 18, só permanecia no pedaço quem tinha negócio...
A partir da década de 1990, a imprensa começou cerrada campanha alertando a população sobre “os perigos e as inconveniências” de tomar banho nos rios de cidade: “águas poluídas, afogamentos, violência”... Curiosamente, não se combatia a poluição dos rios.
Aos poucos, Teresina “modernizou-se” e virou as costas para o local onde nasceu. Os rios tornaram-se simples escoadouro dos efluentes indesejáveis. Hoje, existem duas cidades com feições bem distintas: antes da ponte estaiada, uma cidade suja, poluída, empobrecida, onde casas antigas se convertem em estacionamentos. Depois da ponte, shoppings, apartamentos de luxo e restaurantes caros, onde bem-nascidos e novos ricos disputam os melhores lugares para estacionar os automóveis importados. É tudo tão Teresina, que dói.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
Por volta das dez horas, as coroas fervilhavam: cada palmo daquele chão escaldante era disputado no grito e, às vezes, no tapa. Os peladeiros, que praticamente moravam ali, adonavam-se das melhores fatias. A lei que rege as peladas é universal: do pescoço pra baixo, tudo é canela. Entre os peladeiros, alguns eram conhecidos: Caio de Timon, Mão-na-faca, Cabinha, Zé de Fátima, Dedé da Múmia, Paulo, Beto, Pezão, Pompeu, Carlitos, entre outros.
Por volta do meio-dia, chegava a Turma do pagode. Ai, rolavam sambas manjados, batucada, caipirinha, piaba frita e (por que não dizer?) generosos baseados...
Casais de namorados, acoitados pelas águas barrentas do rio, pinavam, indiferentes ao rugir da turba. Ninguém se metia com a vida de ninguém. Os vendedores ambulantes circulavam por toda parte. Vendiam quase tudo: melancia, milho assado, picolé amazonas, dim-dim...
Por volta das 16 horas, apareciam as meninas “prestativas”. Dependendo do acerto, faziam qualquer coisa, exceto beijar na boca. Bêbados, escornados, espalhavam-se pelas areias. Firmes e irremovíveis, os peladeiros continuavam chutando bolas e adversários. Depois das 18, só permanecia no pedaço quem tinha negócio...
A partir da década de 1990, a imprensa começou cerrada campanha alertando a população sobre “os perigos e as inconveniências” de tomar banho nos rios de cidade: “águas poluídas, afogamentos, violência”... Curiosamente, não se combatia a poluição dos rios.
Aos poucos, Teresina “modernizou-se” e virou as costas para o local onde nasceu. Os rios tornaram-se simples escoadouro dos efluentes indesejáveis. Hoje, existem duas cidades com feições bem distintas: antes da ponte estaiada, uma cidade suja, poluída, empobrecida, onde casas antigas se convertem em estacionamentos. Depois da ponte, shoppings, apartamentos de luxo e restaurantes caros, onde bem-nascidos e novos ricos disputam os melhores lugares para estacionar os automóveis importados. É tudo tão Teresina, que dói.
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