Era um tempo sem colheita / mas havia a crença: / viver não doía tanto. Bem que poderia ter sido assim; não foi. Numa manhã de cristal, dessas que só acontecem em Teresina, fui literalmente despejado na Praça Saraiva. Era maio de 65. Nos bolsos, vinte cruzeiros, uma carta de recomendação, que se revelaria inútil, e o endereço de um quase-parente que jamais procurei. Nos olhos, a poeira da estrada e o espanto diante do novo. No corpo inteiro, o medo latejante.
De cara, três surpresas. A primeira, preocupante: a quantidade de carros trafegando nas ruas. Carecia tomar tento pra não voltar para a aldeia convertido em notícia ruim. A segunda, estimulante: a abundância (taí a palavra adequada!) de mulheres por toda parte. De onde eu vinha, só se via algo parecido no dia da procissão do padroeiro. A terceira, elucidativa: o Parnaíba. O risco inexpressivo dos manuais de geografia, na verdade, era uma veia aberta, generosa, encharcando de vida a terra, os bichos e a gente do Piauí.
Depois de zanzar por pensões ordinárias, atraquei na UPES (depois, CCEP) onde já se amontoavam outros náufragos. A casa poderia acomodar, com desconforto, dez pessoas. Éramos oitenta! Normalmente, faltava água e não havia um único banheiro, o que na verdade não fazia tanta falta, já que também não havia o que comer. “Deus só dá o frio conforme o cobertor”.
Desbravar a cidade, um desafio. Na Pê 2, as mulheres, como animais em exposição, circulavam graciosamente. Os homens, mãos nos bolsos para disfarçar, conferiam, aferiam, faziam comentários impublicáveis. No coreto, a bandinha da PM atacava de dobrados e marchinhas, “programa de velho”. Na parte alta, recrutas bolinavam "curicas". Na Paissandu, a noite nunca envelhecia. Estrela, Amambay, Fascinação: boleros, varizes, cerveja e gonorreia. Ê, Antônio Leiteiro!
No Clube dos Diários, a fina flor da burguesia embalava-se ao som do Barbosa Show Bossa em “tertúlias”, onde havia um pouco de tudo: namoros, conchavos, negócios, jogatina. Como um cão de guarda, Marcelino conferia o pedigree de cada novo sócio e escorraçava os indesejáveis. E eu comendo com a testa!
No Carnaúba, homens e ratos disputavam o mesmo espaço, com ligeira vantagem para estes que, na condição de provadores, beliscavam tudo sem pagar nada. No Flutuante, meninos entanguidos e piabas elétricas disputavam migalhas, sob o olhar complacente das lavadeiras seminuas.
Nos programas de calouros, Ruy – o primeiro cabeludo da cidade – fazia paródias geniais: “Garota de Timon nunca teve vez/Nem que seja bonitinha/Nem que fale inglês/Lá é duro tinindo/E quem governa é o padre Delfino”. Valdenir, com voz chorosa, cantava “Maria Helena”, sempre a“pedido”. Nos saraus familiares, Silizinho e Assis Davys cantavam “Perfídia” com sotaque caribenho.
Nos embalos jovens, Brasinhas, Metralhas, Sambrasa arrepiavam. Luz e cor: calça boca de sino, botas calhambeque, rum com Coca-Cola, minissaia de napa, milk-shake. Nas mãos afoitas e nervosas, passeavam inocentes baseados. “Me segura que eu vou dar um troço!”
Nas emissoras de rádio, “o mundo em ondas sonoras”. A. Tito Filho vertia cultura pelos poros; Ary Sherlock esbanjava glamour, Figueiredo fustigava os desafetos (todo mundo) com seu Almanaquinho do Ar, Roque Moreira comandava o Seu gosto na Berlinda; Mariquinha e Maricota estilavam veneno; Al Lebre enchia o saco de meio mundo com seu chocalho madrugador; Deoclécio Dantas e Carlos Augusto vergastavam políticos e delinquentes, e Dom Avelar, com sua autoridade de pastor, apascentava o rebanho com a “Oração por um dia feliz”. Tudo tão Teresina!
No Theatro 4 de Setembro, rolava tudo: Maciste, Tarzan, índios, caubóis, tapas e beijos. No carnaval, realizavam-se os concorridos bailes promovidos pela Prefeitura, com direito a tombos no piso inclinado. Na semana Santa, a exibição da indefectível “Tragédia do Gólgota”, encenada por Santana e Silva. Nas páginas de O Dia, Fabrício Arêa Leão escrevia crônicas laudatórias em aramaico, enquanto Dona Elvira atiçava a “fogueira das vaidades” dos novos-ricos. Ê, cidade amada!
No Lindolfo Monteiro, Gringo, Vilmar, Evandro e Sima agitavam a galera, enquanto Carlos Said desancava os “energúmenos” em linguagem tão pomposa, que muitos se sentiam lisonjeados. Mas o melhor mesmo era ofender a mãe do juiz, sabendo que ele estava ouvindo tudo. Te segura, Braz!
E tão envolvido eu estava, que nem me dei conta de que a cidade crescia, inchava, cercada de favelas, prenhe de cursinhos, panificadoras, motéis, templos evangélicos, casas lotéricas, carros importados, mendigos, telefones celulares e o escambau... E aqui estou eu, bestamente, amando essa pobre cidade transitória, como se fosse a mais importante do mundo. E é!
( CS - TERESINA PARA AMADORES - 1996).
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
De cara, três surpresas. A primeira, preocupante: a quantidade de carros trafegando nas ruas. Carecia tomar tento pra não voltar para a aldeia convertido em notícia ruim. A segunda, estimulante: a abundância (taí a palavra adequada!) de mulheres por toda parte. De onde eu vinha, só se via algo parecido no dia da procissão do padroeiro. A terceira, elucidativa: o Parnaíba. O risco inexpressivo dos manuais de geografia, na verdade, era uma veia aberta, generosa, encharcando de vida a terra, os bichos e a gente do Piauí.
Depois de zanzar por pensões ordinárias, atraquei na UPES (depois, CCEP) onde já se amontoavam outros náufragos. A casa poderia acomodar, com desconforto, dez pessoas. Éramos oitenta! Normalmente, faltava água e não havia um único banheiro, o que na verdade não fazia tanta falta, já que também não havia o que comer. “Deus só dá o frio conforme o cobertor”.
Desbravar a cidade, um desafio. Na Pê 2, as mulheres, como animais em exposição, circulavam graciosamente. Os homens, mãos nos bolsos para disfarçar, conferiam, aferiam, faziam comentários impublicáveis. No coreto, a bandinha da PM atacava de dobrados e marchinhas, “programa de velho”. Na parte alta, recrutas bolinavam "curicas". Na Paissandu, a noite nunca envelhecia. Estrela, Amambay, Fascinação: boleros, varizes, cerveja e gonorreia. Ê, Antônio Leiteiro!
No Clube dos Diários, a fina flor da burguesia embalava-se ao som do Barbosa Show Bossa em “tertúlias”, onde havia um pouco de tudo: namoros, conchavos, negócios, jogatina. Como um cão de guarda, Marcelino conferia o pedigree de cada novo sócio e escorraçava os indesejáveis. E eu comendo com a testa!
No Carnaúba, homens e ratos disputavam o mesmo espaço, com ligeira vantagem para estes que, na condição de provadores, beliscavam tudo sem pagar nada. No Flutuante, meninos entanguidos e piabas elétricas disputavam migalhas, sob o olhar complacente das lavadeiras seminuas.
Nos programas de calouros, Ruy – o primeiro cabeludo da cidade – fazia paródias geniais: “Garota de Timon nunca teve vez/Nem que seja bonitinha/Nem que fale inglês/Lá é duro tinindo/E quem governa é o padre Delfino”. Valdenir, com voz chorosa, cantava “Maria Helena”, sempre a“pedido”. Nos saraus familiares, Silizinho e Assis Davys cantavam “Perfídia” com sotaque caribenho.
Nos embalos jovens, Brasinhas, Metralhas, Sambrasa arrepiavam. Luz e cor: calça boca de sino, botas calhambeque, rum com Coca-Cola, minissaia de napa, milk-shake. Nas mãos afoitas e nervosas, passeavam inocentes baseados. “Me segura que eu vou dar um troço!”
Nas emissoras de rádio, “o mundo em ondas sonoras”. A. Tito Filho vertia cultura pelos poros; Ary Sherlock esbanjava glamour, Figueiredo fustigava os desafetos (todo mundo) com seu Almanaquinho do Ar, Roque Moreira comandava o Seu gosto na Berlinda; Mariquinha e Maricota estilavam veneno; Al Lebre enchia o saco de meio mundo com seu chocalho madrugador; Deoclécio Dantas e Carlos Augusto vergastavam políticos e delinquentes, e Dom Avelar, com sua autoridade de pastor, apascentava o rebanho com a “Oração por um dia feliz”. Tudo tão Teresina!
No Theatro 4 de Setembro, rolava tudo: Maciste, Tarzan, índios, caubóis, tapas e beijos. No carnaval, realizavam-se os concorridos bailes promovidos pela Prefeitura, com direito a tombos no piso inclinado. Na semana Santa, a exibição da indefectível “Tragédia do Gólgota”, encenada por Santana e Silva. Nas páginas de O Dia, Fabrício Arêa Leão escrevia crônicas laudatórias em aramaico, enquanto Dona Elvira atiçava a “fogueira das vaidades” dos novos-ricos. Ê, cidade amada!
No Lindolfo Monteiro, Gringo, Vilmar, Evandro e Sima agitavam a galera, enquanto Carlos Said desancava os “energúmenos” em linguagem tão pomposa, que muitos se sentiam lisonjeados. Mas o melhor mesmo era ofender a mãe do juiz, sabendo que ele estava ouvindo tudo. Te segura, Braz!
E tão envolvido eu estava, que nem me dei conta de que a cidade crescia, inchava, cercada de favelas, prenhe de cursinhos, panificadoras, motéis, templos evangélicos, casas lotéricas, carros importados, mendigos, telefones celulares e o escambau... E aqui estou eu, bestamente, amando essa pobre cidade transitória, como se fosse a mais importante do mundo. E é!
( CS - TERESINA PARA AMADORES - 1996).
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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