Por amor à verdade, confesso: não figurava no meu projeto de vida a intenção de me tornar professor. Menino, a exemplo de todos os moleques da minha aldeia, eu pretendia ir para São Paulo, ganhar dinheiro graúdo e comprar uma sanfona Scandalli vermelha. Na verdade, eu queria me tornar cantor de boleros num daqueles circos ordinários que mambembeavam pelos sertões do nordeste. Sejamos mais preciso: eu queria mesmo era impressionar as mulheres...Um detalhe: esqueci-me de combinar com dona Purcina, que sempre tinha a palavra final.
Tornei-me professor por acidente de percurso. Aprovado no vestibular de Direito, em 1970, recebi um “presente” insólito: uma carta de despejo. Como não era mais estudante secundarista, eu deveria deixar, no prazo de 30 dias, as dependências do CCEP, um pardieiro onde se alojava uma legião de náufragos.
Instigado por um companheiro de infortúnio, procurei um colégio (Instituto Elias Torres) onde funcionava um curso madureza (supletivo). Assim, em abril de 1970, ministrei a minha primeira aula, uma xaropada indigesta. Para minha surpresa, os alunos aprovaram. O mais é do conhecimento de todos: permaneço em sala de aula até hoje.
Não seria exagero afirmar que o magistério me deu mais do que fiz por merecer. Deu-me visibilidade, credibilidade, o respeito de muitos e o carinho de alguns. Para um cristão do meu tope, não é pouco. Em sala de aula, sinto-me em casa.
Ao longo dessa trajetória, vivi experiências inesquecíveis. Uma delas: em meados da década de 1970, eu ministrava uma aula de literatura no cursinho Andreas Vesalius. Turma imensa, sala abafada, mal iluminada. Eu comentava a obra de Manuel Bandeira, um dos meus poetas preferidos. Lá pelas tantas, decidi falar o poema “Balada das três mulheres do sabonete Araxá”. Mal comecei a dizer o poema, a luz apagou. Como sói acontecer em tais circunstâncias, os alunos começaram a assobiar, bater os pés, falar bobagens... Alguns acenderam aqueles isqueiros da BIC. À época, ainda não havia celulares.
Em vez de pedir silêncio, o que seria inútil, continuei a dizer o poema sem levantar a voz. Aos poucos, os alunos foram-se aquietando até que, na sala, só se ouvia a minha voz. Algo de mágico estava acontecendo ali. De repente, a secretária, meio atabalhoada, adentrou a sala, quase correndo, com uma vela de estearina na mão... Quebrou-se o encanto, e os alunos “brindaram-na” com uma vaia estrepitosa. Impávido, continuei o poema até o final. Nunca fui tão aplaudido em minha vida de muitos aplausos. Sou, com muito orgulho, um velho professor.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
Tornei-me professor por acidente de percurso. Aprovado no vestibular de Direito, em 1970, recebi um “presente” insólito: uma carta de despejo. Como não era mais estudante secundarista, eu deveria deixar, no prazo de 30 dias, as dependências do CCEP, um pardieiro onde se alojava uma legião de náufragos.
Instigado por um companheiro de infortúnio, procurei um colégio (Instituto Elias Torres) onde funcionava um curso madureza (supletivo). Assim, em abril de 1970, ministrei a minha primeira aula, uma xaropada indigesta. Para minha surpresa, os alunos aprovaram. O mais é do conhecimento de todos: permaneço em sala de aula até hoje.
Não seria exagero afirmar que o magistério me deu mais do que fiz por merecer. Deu-me visibilidade, credibilidade, o respeito de muitos e o carinho de alguns. Para um cristão do meu tope, não é pouco. Em sala de aula, sinto-me em casa.
Ao longo dessa trajetória, vivi experiências inesquecíveis. Uma delas: em meados da década de 1970, eu ministrava uma aula de literatura no cursinho Andreas Vesalius. Turma imensa, sala abafada, mal iluminada. Eu comentava a obra de Manuel Bandeira, um dos meus poetas preferidos. Lá pelas tantas, decidi falar o poema “Balada das três mulheres do sabonete Araxá”. Mal comecei a dizer o poema, a luz apagou. Como sói acontecer em tais circunstâncias, os alunos começaram a assobiar, bater os pés, falar bobagens... Alguns acenderam aqueles isqueiros da BIC. À época, ainda não havia celulares.
Em vez de pedir silêncio, o que seria inútil, continuei a dizer o poema sem levantar a voz. Aos poucos, os alunos foram-se aquietando até que, na sala, só se ouvia a minha voz. Algo de mágico estava acontecendo ali. De repente, a secretária, meio atabalhoada, adentrou a sala, quase correndo, com uma vela de estearina na mão... Quebrou-se o encanto, e os alunos “brindaram-na” com uma vaia estrepitosa. Impávido, continuei o poema até o final. Nunca fui tão aplaudido em minha vida de muitos aplausos. Sou, com muito orgulho, um velho professor.
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