Confinamento é tempo bastante propício à revivescência do que andava meio esmaecido na memória. Ontem, fiquei emocionado ao ouvir “No dia em que vim embora”, de Caetano Veloso, na voz de Elis Regina. Em tom suave, meio dolente, Elis parece estar rezando. Lá pelas tantas, diz a letra da cantiga: “Senti apenas que a mala/ de couro que eu carregava/ embora estando fechada/ fedia, cheirava mal”. Num átimo, me veio à mente a minha mala de couro, ou melhor, a mala de couro do Paredão...
Naquela esplendente manhã, quando cheguei da feira, dona Purcina, a sertaneja dos verbos no imperativo, disparou: “Amanhã, você vai para Teresina”. Nem me deu tempo de sofrer. Como eu não tinha uma mala minimamente apresentável, recorri ao meu irmão mais querido, o Paredão, que era sapateiro. O amigo tinha uma bela mala de sola, feita por ele, com uns desenhos bonitos. Prometi que a devolveria o mais rápido possível, promessa que não cumpri.
Assim, com os panos de bunda na mala e uma redinha ordinária, fui despejado na Praça Saraiva no dia 2 de maio de 1965.Como ninguém me esperava, fui arrastado por uma mocinha que me levou à Pensão Nova, na Rua Paissandu. O cartão de visita da pensãozinha era o cheiro de urina que se podia sentir na entrada. Ásperos tempos...
O mais é do conhecimento de muitos. Como eu não tinha passagem de volta, fui ficando, ficando, fiquei. Nas andanças e errâncias pelas ruas e becos da cidade, a mala de couro foi perdendo o cheiro da sola; foi ganhando o inconfundível cheiro de pobreza...
O tempo e os contratempos converteram a velha mala em simples lembrança. Quanto ao Paredão, sem se despedir de mim, saiu de cena sem me dar tempo de devolver-lhe a mala. Ao ouvir a cantiga do Caetano, senti o cheiro da sola e (por que não confessar?), saudades de mim...
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
Naquela esplendente manhã, quando cheguei da feira, dona Purcina, a sertaneja dos verbos no imperativo, disparou: “Amanhã, você vai para Teresina”. Nem me deu tempo de sofrer. Como eu não tinha uma mala minimamente apresentável, recorri ao meu irmão mais querido, o Paredão, que era sapateiro. O amigo tinha uma bela mala de sola, feita por ele, com uns desenhos bonitos. Prometi que a devolveria o mais rápido possível, promessa que não cumpri.
Assim, com os panos de bunda na mala e uma redinha ordinária, fui despejado na Praça Saraiva no dia 2 de maio de 1965.Como ninguém me esperava, fui arrastado por uma mocinha que me levou à Pensão Nova, na Rua Paissandu. O cartão de visita da pensãozinha era o cheiro de urina que se podia sentir na entrada. Ásperos tempos...
O mais é do conhecimento de muitos. Como eu não tinha passagem de volta, fui ficando, ficando, fiquei. Nas andanças e errâncias pelas ruas e becos da cidade, a mala de couro foi perdendo o cheiro da sola; foi ganhando o inconfundível cheiro de pobreza...
O tempo e os contratempos converteram a velha mala em simples lembrança. Quanto ao Paredão, sem se despedir de mim, saiu de cena sem me dar tempo de devolver-lhe a mala. Ao ouvir a cantiga do Caetano, senti o cheiro da sola e (por que não confessar?), saudades de mim...
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