Tão atarefado estava em tentar sobreviver que não me sobrava tempo nem disposição para conhecer a cidade. Ainda assim, lembro-me da primeira surpresa: a quantidade de automóveis transitando nas ruas. Carecia tomar muito cuidado para não voltar para a minha aldeia convertido em notícia ruim. A surpresa mais bela: os dois rios banhando a capital. Para quem vinha de uma cidade sem rios e sem notícia de rios, aquilo me parecia um exagero.
Um rio (o Parnaíba) bebia o outro (o Poti) e seguia seu curso rumo ao desconhecido. Eu não poderia imaginar que, em menos de 50 anos, os dois seriam transformados em simples desaguadouro dos efluentes indesejáveis da cidade. Havia também o verde exuberante dos quintais, das praças e dos logradouros. Parafraseando Millôr, Teresina era um oásis sem deserto. De todas as surpresas, a mais tentadora: as mulheres, mulheres em profusão. Imaginei que, com um pouco de sorte, poderia colher algumas...
Mas, a exemplo de qualquer cidade, Teresina não se entregava (nem se entrega) facilmente a náufragos e deserdados. A cidade tinha espaços bem delimitados, com seus respectivos proprietários. Na Praça Pedro 2º, por exemplo, a parte mais baixa pertencia à pequena burguesia e à classe média. A parte superior, sempre na penumbra, era o local onde as "curicas" namoravam os pracinhas...
Até nos prostíbulos, havia distinção de classes. A Paissandu, no centro da cidade, era frequentada por desembargadores, juízes, secretários, comerciantes, gente graúda. Nas boates, com música ao vivo – Estrela, Fascinação, Amambay – alguns frequentadores tinham mesas cativas. Aos menos favorecidos, opções miseráveis: Palha de Arroz, Ema, Estação, Trilhos...
Para mim, tudo era, a um tempo, fascinante e assustador. Em cada canto da cidade, uma esfinge parecia me advertir: “Decifra-me ou te devoro”. Eu tinha lido sobre isso num velho livro do Joaquim Silva. O diabo é que eu não tinha o código, a chave, o roteiro. Descobrir, às vezes, dói.
(fragmento do livro O aldeão lítico)
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
Um rio (o Parnaíba) bebia o outro (o Poti) e seguia seu curso rumo ao desconhecido. Eu não poderia imaginar que, em menos de 50 anos, os dois seriam transformados em simples desaguadouro dos efluentes indesejáveis da cidade. Havia também o verde exuberante dos quintais, das praças e dos logradouros. Parafraseando Millôr, Teresina era um oásis sem deserto. De todas as surpresas, a mais tentadora: as mulheres, mulheres em profusão. Imaginei que, com um pouco de sorte, poderia colher algumas...
Mas, a exemplo de qualquer cidade, Teresina não se entregava (nem se entrega) facilmente a náufragos e deserdados. A cidade tinha espaços bem delimitados, com seus respectivos proprietários. Na Praça Pedro 2º, por exemplo, a parte mais baixa pertencia à pequena burguesia e à classe média. A parte superior, sempre na penumbra, era o local onde as "curicas" namoravam os pracinhas...
Até nos prostíbulos, havia distinção de classes. A Paissandu, no centro da cidade, era frequentada por desembargadores, juízes, secretários, comerciantes, gente graúda. Nas boates, com música ao vivo – Estrela, Fascinação, Amambay – alguns frequentadores tinham mesas cativas. Aos menos favorecidos, opções miseráveis: Palha de Arroz, Ema, Estação, Trilhos...
Para mim, tudo era, a um tempo, fascinante e assustador. Em cada canto da cidade, uma esfinge parecia me advertir: “Decifra-me ou te devoro”. Eu tinha lido sobre isso num velho livro do Joaquim Silva. O diabo é que eu não tinha o código, a chave, o roteiro. Descobrir, às vezes, dói.
(fragmento do livro O aldeão lítico)
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