Naquele tempo (idos de 1957), a fome grassava afoita no sertão do Piauí. Tangia gentes e bichos rumo a qualquer lugar onde houvesse cheiro de água ou comida. Os retirantes pervagavam pelas securas das estradas. Os que chegavam à cidade, amontoavam-se num prédio inconcluso e abandonado conhecido como “Mercado velho”. Uma vez por semana, a Prefeitura entregava a cada família um prato de farinha de mandioca, um quarto de rapadura e um pedaço de carne jabá, uma espécie de charque rançoso. Era tudo.
Uma manhã, dona Purcina foi ao Mercado Velho levar o que ela chamava de “adjutório” àquela gente meio morta. De repente, deparou-se com uma família de retirantes das bandas do Ceará: Cândido, Anália e um punhado de filhos entanguidos. Entre eles, o mais novo atendia pelo nome de Zé. Teria uns três anos, pernas muito finas que não lhe suportavam o peso do corpo. Não caminhava. Divertia os que lhe dessem algo com jeito de comida exibindo um movimento conhecido no balé como espacate, que consiste em abrir as pernas de modo que estas formem um ângulo de 180° e fiquem paralelas ao solo. Ao vê-lo, a Matriarca sentenciou: “O bichim não tem sustança para ficar de pé. Leve ele para comer lá em casa”, recomendou à mãe. A nossa casa ficava bem próxima daquele abrigo tenebroso. Ao meio-dia, lá estavam o Zé, os irmãos, o pai e a mãe. A comida era simples, rústica: “pintado”: milho, feijão com pedaços de carne seca.
Naquela manhã, fez-se a multiplicação dos pães, especialidade das mães sertanejas, e todos comeram. O prato do Zé recebeu a contribuição dos nossos. Cada um acrescentou-lhe mais uma colherada. E o Zé comia, ou melhor, saboreava a comida e a sensação de raridade da comida, como diria o poeta. Aos poucos, todos paramos de comer para vê-lo “fartar-se”. Jamais alguém comera daquele jeito. À proporção que o prato se esvaziava, mudava-lhe o semblante: de satisfeito a apreensivo. Começou a comer devagar, deixando a resto da comida concentrado no meio do prato, formando uma bolinha de alimento.
De repente, fechou os olhos e levou a última colherada à boca... A ver o prato vazio, começou a chorar desesperadamente. Não chorava de fome; chorava pela certeza de que a fome voltaria. Num prazo de pouco mais de dois meses, com uma refeição por dia, o Zé já corria atrás dos irmãos.
Com a volta das chuvas, a família rumou para Brasília e converteu-se em número nas estatísticas oficiais. Quando ao Zé, consta que trocou o balé por uma farda da Aeronáutica onde teria feito carreira. Mas isso eu não posso testificar.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
Uma manhã, dona Purcina foi ao Mercado Velho levar o que ela chamava de “adjutório” àquela gente meio morta. De repente, deparou-se com uma família de retirantes das bandas do Ceará: Cândido, Anália e um punhado de filhos entanguidos. Entre eles, o mais novo atendia pelo nome de Zé. Teria uns três anos, pernas muito finas que não lhe suportavam o peso do corpo. Não caminhava. Divertia os que lhe dessem algo com jeito de comida exibindo um movimento conhecido no balé como espacate, que consiste em abrir as pernas de modo que estas formem um ângulo de 180° e fiquem paralelas ao solo. Ao vê-lo, a Matriarca sentenciou: “O bichim não tem sustança para ficar de pé. Leve ele para comer lá em casa”, recomendou à mãe. A nossa casa ficava bem próxima daquele abrigo tenebroso. Ao meio-dia, lá estavam o Zé, os irmãos, o pai e a mãe. A comida era simples, rústica: “pintado”: milho, feijão com pedaços de carne seca.
Naquela manhã, fez-se a multiplicação dos pães, especialidade das mães sertanejas, e todos comeram. O prato do Zé recebeu a contribuição dos nossos. Cada um acrescentou-lhe mais uma colherada. E o Zé comia, ou melhor, saboreava a comida e a sensação de raridade da comida, como diria o poeta. Aos poucos, todos paramos de comer para vê-lo “fartar-se”. Jamais alguém comera daquele jeito. À proporção que o prato se esvaziava, mudava-lhe o semblante: de satisfeito a apreensivo. Começou a comer devagar, deixando a resto da comida concentrado no meio do prato, formando uma bolinha de alimento.
De repente, fechou os olhos e levou a última colherada à boca... A ver o prato vazio, começou a chorar desesperadamente. Não chorava de fome; chorava pela certeza de que a fome voltaria. Num prazo de pouco mais de dois meses, com uma refeição por dia, o Zé já corria atrás dos irmãos.
Com a volta das chuvas, a família rumou para Brasília e converteu-se em número nas estatísticas oficiais. Quando ao Zé, consta que trocou o balé por uma farda da Aeronáutica onde teria feito carreira. Mas isso eu não posso testificar.
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