O caminhãozinho chegou a Campo Formoso por volta das dez horas. Era um Chevrolet valente, com apenas quatro pneus. Vinha buscar uma carga de mamona. Era a primeira vez que um carro chegava àquele fim de mundo. Aos olhos da molecada, um assombro...
À época, seu Liberato tinha uma quitandinha em Campo Formoso. De tão ordinária, a birosca nem razão social tinha. Vendia-se apenas: querosene, sal, rapadura, café, fumo e alguma bebida. Como o velho não tinha vocação para quitandeiro, “ofício de cabra preguiçoso”, as portas da bodega permaneciam quase sempre fechadas. Naquela manhã, estavam abertas.
Da boleia do caminhão, desceu um cidadão pequeno, apressadinho, de olhar severo. Era seu Abdon Rosado, um comerciante de São Raimundo Nonato. Entrou, cumprimentou meu pai, falaram coisas que me fugiam ao entendimento. Eu estava sentado no balcão, encostado na parede. Alguém, que não me lembro, propôs um brinde. Meu pai abriu uma garrafinha de Moscatel. Depois de servir a todos, pôs um pouco num copinho de alumínio (na verdade, era a tampa de garrafa de Água Inglesa) para mim. Imaginem como eu estava me sentindo: além de me permitirem estar entre adultos, tinha direito a vinho Moscatel.
A festa durou pouco: quando levantei o copinho para sorver a bebida, seu Abdon, virou-se para meu pai e perguntou: “Liberato, este menino já bebe?”. Antes que meu velho pudesse engendrar alguma desculpa, aquele homenzinho austero virou-se para mim e disse: “Olha aqui, rapazinho, pra começo de conversa, trate de cortar este cabelo. Quem usa cabelo grande é mulher. Em segundo lugar, se você começar a beber agora, vai ficar burro, não vai aprender a ler, não vai ser nada na vida”.
De uma tacada só, livrou-me da cabeleira e do vício. Quanto à burrice...
(fragmento de O aldeão lírico)
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
À época, seu Liberato tinha uma quitandinha em Campo Formoso. De tão ordinária, a birosca nem razão social tinha. Vendia-se apenas: querosene, sal, rapadura, café, fumo e alguma bebida. Como o velho não tinha vocação para quitandeiro, “ofício de cabra preguiçoso”, as portas da bodega permaneciam quase sempre fechadas. Naquela manhã, estavam abertas.
Da boleia do caminhão, desceu um cidadão pequeno, apressadinho, de olhar severo. Era seu Abdon Rosado, um comerciante de São Raimundo Nonato. Entrou, cumprimentou meu pai, falaram coisas que me fugiam ao entendimento. Eu estava sentado no balcão, encostado na parede. Alguém, que não me lembro, propôs um brinde. Meu pai abriu uma garrafinha de Moscatel. Depois de servir a todos, pôs um pouco num copinho de alumínio (na verdade, era a tampa de garrafa de Água Inglesa) para mim. Imaginem como eu estava me sentindo: além de me permitirem estar entre adultos, tinha direito a vinho Moscatel.
A festa durou pouco: quando levantei o copinho para sorver a bebida, seu Abdon, virou-se para meu pai e perguntou: “Liberato, este menino já bebe?”. Antes que meu velho pudesse engendrar alguma desculpa, aquele homenzinho austero virou-se para mim e disse: “Olha aqui, rapazinho, pra começo de conversa, trate de cortar este cabelo. Quem usa cabelo grande é mulher. Em segundo lugar, se você começar a beber agora, vai ficar burro, não vai aprender a ler, não vai ser nada na vida”.
De uma tacada só, livrou-me da cabeleira e do vício. Quanto à burrice...
(fragmento de O aldeão lírico)
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