O velho não andava bem. Às vezes, abria um livro numa página qualquer e ficava muito tempo olhando-a como estivesse a ler um parágrafo interminável... Já não pedia café com tanta insistência. Ainda assim, contrariando as recomendações médicas, a velha trazia-lhe a caneca com café quente e forte. Quando vinha recolher a vasilha, o café estava lá, frio, imprestável. Não causava espécie, ouvi-lo perguntar: “Cadê meu café, dona Fulana?” - sempre a tratara assim. Às vezes, resmungava: “Você está ficando inservível”.
A velha inquietava-se: estava comendo pouco, dormindo mal, alheio aos ruídos do mundo... Quando despertava da letargia, tratava-a com aspereza: “A casa está um pulgueiro, dona Fulana... Já deu comida ao Aniceto?” Aniceto era um galinho garnizé, presente de um amigo que já morrera havia muitos anos; o Aniceto, também.
O médico, quase tão velho quanto ele, vinha visitá-lo semanalmente. Media-lhe a pressão, fazia as recomendações de praxe, falava de literatura, paixão de ambos: “Já fez as pazes com o Proust? – provocava. O velho franzia a testa e respondia: “Não passa de um fresco, chato”. E riam-se.
Naquela manhã cinzenta, o velho negou-se a levantar-se da cama. O médico o examinou, mudou a medicação e, ao sair, recomendou: “Avise ao filho”. Depois de várias tentativas, o filho atendeu. Estava nalgum lugar insituável. “Está mal? Mal de verdade ou apenas com a ruindade mais acentuada?” E desligou. Três dias depois, adentou a casa esbravejando: “Abra essas janelas, mulher!”. O velho fingiu reconhecê-lo: esboçou um sorriso sem viço. “Como vai, dinossauro?” Fechou os olhos e fez um gesto vago com a mão...
Na manhã seguinte, na frente da casa antiga, estacionou um caminhão-baú. Desceram três carregadores. “Vamos começar por aqui” e apontou para a biblioteca onde Borges Dialogava com Machado; Cervantes ouvia Shakespeare e Quintana contava estrelas... Enquanto os livros eram jogados no baú como inutilidades, fez um comentário ácido: “Tivesse empregado o dinheiro que gastou com isso nalguma aplicação rentável, estaria rico!”
O velho percebeu a movimentação estranha na casa. Com a ajuda da velha, levantou-se e, tropicando nas próprias pernas, dirigiu-se à biblioteca onde passara a maior parte da vida. De repente, parou e, apoiando-se no portal, pediu um copo d’água. A velha ainda o ouviu balbuciar: “Filho da puta!”. Ao regressar, já o encontrou caído, morto.
*****
Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural.
A velha inquietava-se: estava comendo pouco, dormindo mal, alheio aos ruídos do mundo... Quando despertava da letargia, tratava-a com aspereza: “A casa está um pulgueiro, dona Fulana... Já deu comida ao Aniceto?” Aniceto era um galinho garnizé, presente de um amigo que já morrera havia muitos anos; o Aniceto, também.
O médico, quase tão velho quanto ele, vinha visitá-lo semanalmente. Media-lhe a pressão, fazia as recomendações de praxe, falava de literatura, paixão de ambos: “Já fez as pazes com o Proust? – provocava. O velho franzia a testa e respondia: “Não passa de um fresco, chato”. E riam-se.
Naquela manhã cinzenta, o velho negou-se a levantar-se da cama. O médico o examinou, mudou a medicação e, ao sair, recomendou: “Avise ao filho”. Depois de várias tentativas, o filho atendeu. Estava nalgum lugar insituável. “Está mal? Mal de verdade ou apenas com a ruindade mais acentuada?” E desligou. Três dias depois, adentou a casa esbravejando: “Abra essas janelas, mulher!”. O velho fingiu reconhecê-lo: esboçou um sorriso sem viço. “Como vai, dinossauro?” Fechou os olhos e fez um gesto vago com a mão...
Na manhã seguinte, na frente da casa antiga, estacionou um caminhão-baú. Desceram três carregadores. “Vamos começar por aqui” e apontou para a biblioteca onde Borges Dialogava com Machado; Cervantes ouvia Shakespeare e Quintana contava estrelas... Enquanto os livros eram jogados no baú como inutilidades, fez um comentário ácido: “Tivesse empregado o dinheiro que gastou com isso nalguma aplicação rentável, estaria rico!”
O velho percebeu a movimentação estranha na casa. Com a ajuda da velha, levantou-se e, tropicando nas próprias pernas, dirigiu-se à biblioteca onde passara a maior parte da vida. De repente, parou e, apoiando-se no portal, pediu um copo d’água. A velha ainda o ouviu balbuciar: “Filho da puta!”. Ao regressar, já o encontrou caído, morto.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural.
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