Hoje saio das pautas de política cultural, política social, política e peço licença para rabiscar algumas linhas acerca de uma bela obra a que tive acesso recentemente e que tive o prazer de fazer a apresentação. Trata-se do livro de Ferdinand Pereira, O Artífice do Afeto, publicado pelo Instituto de Comunicação e Cultura e lançado recentemente na Livraria Anchieta em Teresina. O livro narra a vida do compositor piauiense, Raimundo Pereira Filho, pai do autor e nascido no final do século XIX. Personagem que antes de retornar à vida nas linhas traçadas pelo filho, vivenciou o crescimento das sociabilidades em Teresina no início do século passado, presenciando momentos de efervescência cultural, como também momentos de tensão e conflitos.
Trata-se de um romance de vivências, pensado fora do escopo tradicional do gênero. Desenrola-se através da fala do narrador. Um bom narrador tão procurado por Walter Benjamin.
O livro se constitui como um espaço de encontros. Encontro entre pai e filho. Entre Raimundo e Ferdinand. Encontro entre mãe e filhas: entre Mnemosyne, deusa da Memória e Clio, musa da História; entre Mnemosyne e Euterpe, musa da Música.
Narrativa lírica em que as raízes da memória do narrador revelam sua identidade no contexto narrado e em que ação e emoção se confundem em cada parágrafo do texto.
O Artífice do Afeto traz para a visibilidade uma história de vida, de uma vida que como um daisen, Heideggeriano, aconteceu em seu presente, criou raízes, traçou a própria essência e fez florescer em seu tempo uma historicidade latente que somente agora se revela nas linhas narradas por Ferdinand.
O narrador no desenrolar do enredo que segue a vida de seu pai, a vida da cidade, a vida de seu tempo; se vale de sua própria memória e recorre à memória de seu pai cristalizada em seus escritos revelados em cadernos de anotações e diários. O objetivo é claro: trazê-lo à vida, em que mesmo ausente se torna, como bem destaca Certeau, uma troca entre presentes.
O enredo narrado revela hibridações entre memória coletiva, memória individual e histórica e demonstra a preocupação do narrador com o esquecimento e com os silenciamentos impostos pelas classes hegemônicas ao ambiente popular.
A memória que se constrói no presente e é objeto de disputas e revelada sob pontos de vista e determinados olhares é, neste caso específico, o lugar onde o narrador foi escavar para trazer as ações agora narradas para a nossa contemporaneidade, pois a memória de um ausente só se faz presente, enquanto os seus contemporâneos estiverem em vida; a menos, que a intervenção de um narrador, o devolva para a sociedade.
Sobre o pai, Ferdinand revela não só detalhes de como ele era, mas principalmente, detalhes de como ele Ferdinand, hoje narrador, o via. Traços físicos bem descritos se integram ao ambiente e aos objetos de seu tempo. O relógio do músico tem papel de destaque e, portanto, revela a relação de Raimundo Pereira Filho com a sua própria temporalidade.
A longa vida de Raimundo lhe possibilitou boas experiências amorosas e outras um pouco mais complicadas. No processo de narração, FerdinandPereira, filho do último casamento do músico, não compromete sua identidade em nenhum momento, mas em muitos instantes, assume a de seu pai, agora personagem de sua narrativa. As impressões sobre os amores são as assumidas pelo pai. O ângulo adotado na narrativa transparece não só os escritos do pai, lugar de memória, de rastros e vestígios, mas também a assunção de um perfil que o narrador adota para o personagem, que complementa a declaração do autor sobre o próprio pai: _ que teria sido antes de tudo um ser humano que se articulou e se moveu em vida, como artífice do afeto.
E é na música que, como bem destaca o narrador, se revela o homem afetuoso. A trajetória difícil de um músico em uma Teresina provinciana; trajetória iniciada há mais de um século atrás, é revelada pelas linhas que tão bem traça Ferdinand. São 102 partituras localizadas e já registradas pelo filho na Biblioteca Nacional em nome de seu pai, Raimundo Pereira. Do meio de tantas composições, destacam-se as valsas, que pareciam ser o estilo principal do compositor e que somam mais de 70.
Assim é que em meio à inspiração latente do pai, Ferdinand traz Euterpe, a Musa da Música para o protagonismo do livro, já que também foi a mola propulsora da vida de Raimundo.
Em outro prisma, o narrador não deixa de lado as vozes da memória coletiva e histórica. Através de seu pai e da efetiva participação deste em pequenas ações durante os incêndios das casas de palha em Teresina, revela o modelo governamental repressor de uma época, como também, dá indicativos de uma cidade que vivia em clima de guerra. As vidas partidas. Os relacionamentos rompidos.
Paro por aqui, porque deixo para vocês a possibilidade de um encontro que se processará entre a vida e a ação hoje narrada e cada um de vocês, completando um círculo que tocará de diferentes formas cada leitor, trazendo revelações díspares, mas ainda assim líricas.
Deixo aqui minhas reverências ao músico Raimundo!
Dou aqui os parabéns ao narrador Ferdinand!
E desejo a todos uma ótima leitura!
Fica a dica!
Ana Regina Rêgo
Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião desta página, se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.