Todos os anos comemoramos o dia das crianças, que em nosso país coincide com a festa da Padroeira, Nossa Senhora Aparecida. Assim, tendo como mote a festa das crianças, praticamos um consumismo exacerbado com aquisição de presentes para filhos e parentes; normalmente, brinquedos extremamente caros que terão pouca durabilidade e que principalmente, logo deixarão de ser objeto de interesse das crianças beneficiadas, porque já possuem tantos brinquedos que um a mais não fará diferença. Poucos de nós efetivamente param para pensar sobre a necessidade ou não, de um dia pra criança. O mercado por outro lado, procura aproveitar muito bem a data, seduzindo e explorando seu público que nem sempre se encaixa no perfil de consumidores/cidadãos. Todavia, as vendas em torno das datas festivas servem de parâmetro para o avanço ou retração da economia no país.
Não paramos para pensar que o Brasil, que até pouco tempo se utilizava de um posicionamento que o destacava como o país do futuro, não cuida do seu futuro. Não zela por suas crianças. Recentemente o nosso país foi apontado como um dos piores países do mundo para a infância. Fechamos os olhos para o trabalho infantil, toleramos a exploração de menores. Achamos normal que crianças de famílias com baixo poder aquisitivo necessitem trabalhar para sobreviver e que desde idade tenra sejam obrigadas a cuidar dos irmãos menores e ter responsabilidades assumidas somente por adultos, em outras camadas sociais.
Criticamos as políticas sociais de inclusão que nos últimos anos tiraram milhares da linha de pobreza, permitindo que as crianças somente se dediquem ao estudo. Criticamos as políticas de inclusão em universidades porque acreditamos que as vagas do ensino público devem ser para nossos filhos bem nascidos que tiveram a oportunidade de estudar nos melhores colégios e que devem tirar as melhores notas. Embasados obviamente no pensamento de que somos nós que pagamos os impostos. Não enxergamos que o fosso da desigualdade social não é benéfico para a sociedade. Não conseguimos visualizar que édesse buraco enorme que separa ricos e pobres que sai a violência que nos impede de ter uma vida plena em qualquer lugar do Brasil.
Em contraposição, costumamos defender nosso status quo também pelo viés de um falso discurso de aceitabilidade social. Alguns permitem até que seus filhos tenham amigos pobres, mantendo o manto da hipocrisia, nunca desvelado para lutar ao lado dos que precisam, mesmo que sejam crianças.
Pois bem, é esse país que diz zelar por seu futuro que, em um estudo realizado pela ONG Internacional SavetheChildren, foi apontado como o pior país da América do Sul para crianças, sobretudo meninas. Dentre os maiores problemas elencados encontramos a gravidez precoce, o casamento prematuro, a desigualdade de direitos, o que reflete no quadro de representatividade pública das mulheres na vida adulta.
Nesse ínterim, a onda conservadora que se levantou por todos os cantos da nação, analisa a conjuntura de forma simplista e muitas vezes minimalista, empurrando todos os problemas do país para o esgoto da corrupção política, mas não consegue entender a própria responsabilidade nos processosque se estabelecem no país.
No que concerne ao problema da infância, Estado e sociedade civil compartilham de responsabilidades, que necessitam ser assumidas por todos. Precisamos entender que também somos responsáveis pelos que mais necessitam. Precisamos compreender que compartilhar não significa fazer arrecadação e doação de brinquedos e doações roupas e alimentos, embora essas ações possam ser louváveis. Contudo, são ações emergenciais e necessitamos de ações estruturais que mudem realidades, que transformem vidas e que essas vidas transformadas possam mudar outras tantas, como uma corrente do bem, sem fim previsível.
E o que seriam essas ações estruturais? Seriam aquelas possibilitadas por projetos sociais, culturais, esportivos transformadores, que tanto vemos país a fora. Mas não apenas isso. Não apenas transformar o pensamento de quem necessita de melhor sustentabilidade financeira, educação, saúde e cultura. Na verdade, estou convencida de que o trabalho de transformação estrutural passa pela sensibilização e mudança entre os que não precisam de nada, a não ser de aprender a compartilhar e não enxergar o seu semelhante como o outro, como uma alteridade da qual desejo me afastar, como um inimigo.
Compartilhar não apenas bens, mas afetos. Compartilhar não apenas saber, mas conhecimento. Difundir não apenas suas crenças, mas respeitar todas as crenças.
Se conseguirmos respeitar pelo menos os direitos das crianças de forma equitativa em nosso país, será um grande passo, rumo ao combate a desigualdade que nos assola e que aponta para um alargamento do fosso, com as recentes medidas anunciadas pelo Governo com a PEC 241.
Brincadeira de criança é coisa séria para toda criança. Meus pais sempre respeitaram meus horários “ de brincar”, eu sempre privilegiei os horários de brincadeira das minhas filhas. Então como permitimos que crianças do nosso entorno sofram todos os dias com o trabalho obrigatório e com a exploração.
Por outro lado, como podemos permitir que nossas crianças tenham cada vez menos tempo para si e para os amigos, porque necessitam se dedicar integralmente a escola, visando a competitividade de um mercado futuro.
Hoje não deixo dica, mas apenas uma indagação: Que direito temos nós, enquanto sociedade, de não permitirmos que as crianças sejam crianças? Nós que andávamos livres pelas ruas. Nós que tínhamos quatro meses de férias. Nós que brincávamos na chuva. Fica portanto, um convite à reflexão.
Ana Regina Rêgo
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