Década de 1960: a cidade era muito pobre e o carnaval, um arremedo de folia. Os bem-nascidos tinham acesso a clubes onde se realizavam bailes animados, com direito a lança-perfume e alguns amassos. Os foliões pobres contentavam-se com os mela-melas ou participavam dos bailes promovidos pela Prefeitura no velho Theatro 4 de Setembro, com direito a tombos no piso inclinado. Retiravam-se as poltronas de madeira e o mais corria por conta de bandinhas improvisadas.Tudo em nome da alegria.
Recém-chegado a Teresina, juntei-me a outros náufragos no velho prédio da UPES (União Piauiense dos Estudantes Secundaristas), na Rua Desembargador Freitas. Éramos todos muito pobres: o carnaval estava fora das nossas possibilidades. Numa tarde de fevereiro, alguém gritou: “Olha o corso!”. Eu desconhecia a palavra, mas acompanhei o rebanho para apreciar a novidade. O que vi não me deixou entusiasmado: um caminhão com uma charanga desafinada, rapazes e moças em jipes sem capota e uma multidão de lambuzados – “espantalhos desengonçados” – dançando no ritmo das marchinhas antigas. Das calçadas, as pessoas atiravam serpentinas, talco, maizena e produtos menos nobres...A grande atração do corso era um negro, perdão, um afrodescendente, meio careca, um tanto roliço que, fantasiado de baiana, fazia a alegria da plateia. Depois, fiquei sabendo tratar-se de Bernardo Cruz, um alfaiate muito popular na cidade.
Bernardo era, à época, o que a Nicinha seria, anos depois, na Avenida Frei Serafim. Vai que um ano a baiana roliça não apareceu no corso. Desolação geral. Dias depois, no Restaurante Sapucainha, ali no Mafuá, um médico, que adorava folia, encontrou o Bernardo. Não se conteve: “Quer acabar o Carnaval de Teresina, Bernardo? Sem você, a festa não tem a menor graça”. Com ar compungido, o folião perguntou: “Você não soube que eu quase morri?”. Ante a resposta negativa, adiantou: “Fui atropelado por uma carroça que passou por cima do meu pé. Um desastre!”. O Médico, em tom de galhofa, perguntou: “Desde quando uma machucadura no pé pode matar alguém, Bernardo?”. A estrela do corso não se fez de rogado: “Doutor, onde já se viu cavalo de corrida e vedete com o pé quebrado? Só não me matei porque os amigos não deixaram”. Bernardo nunca mais foi o mesmo; o corso, também não.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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