Noutro momento, já expliquei como “descobri” Carlos Drummond de Andrade, o “gauche” arredio. Na remota década de 1960, numa antologia escolar organizada por Walter Wey, encontrei o “Poema de sete faces”, que mudaria, para sempre, o meu conceito de poesia. Li o texto tantas vezes que acabei decorando-o. De tanto ler Drummond, senti-me (como direi?) “íntimo” do poeta. Um dia, ganhei de uma bela senhora a antologia “Reunião”, dez livros de poemas do itabirano. Foi um dos melhores presentes da minha vida.
Em meados da década de 1970, publiquei um folheto de cordel denominado “Vida de Nordestino”, escondido por trás do pseudônimo João José Piripiri. Com a ousadia típica dos inconsequentes, mandei um exemplar para o Drummond. Extremamente atencioso, uma semana depois, recebi um bilhete do poeta. Com sua letra miúda, numa folha de papel muito delicado, escreveu: “Vida de nordestino inscreve-se na melhor tradição da poesia popular nordestina”. Li e reli o bilhete, mas nunca ousei publicá-lo em lugar nenhum. Entendi o gesto como simples delicadeza do itabirano. Algum tempo depois, encontrei o poema “Apelo aos meus dessemelhantes em favor da paz”. Quase morri de vergonha. Entre outras coisas, Drummond afirma: “Não sou leitor do mundo nem espelho/ de figuras que amam refletir-se/ no outro”. Arrependi-me da bobagem que fiz.
Na década de 1980, eu zanzava pelo Rio de Janeiro na companhia de Salgado Maranhão e Moisés a bordo de uma brasília meio desconjuntada. De repente, em Ipanema, vimos um homenzinho apressado, trajando um insólito terno azul-calcinha. Salgado gritou: “Olha o poeta!”. Moisés, que dirigia o automóvel, não se conteve: “É o Drummond. Vamos parar para cumprimentá-lo”. Limitei-me a perguntar: meu irmão, você leu o poema “Apelo aos meus dessemelhantes em favor da paz”? O Moisés respondeu que não. Afirmei: eu li e entendi tudo. A melhor homenagem que se pode prestar a um poeta é ler o que ele escreve; o mais é aporrinhação. Indiferente aos ruídos do mundo, Drummond pôde seguir em paz.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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