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Domingo, 20 de abril de 2025
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Cultura

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cantidiosfilho@gmail.com

30/05/2023 - 09h03

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cantidiosfilho@gmail.com

30/05/2023 - 09h03

CARCARÁS E PENAS

 

Professor Cineas Santos

 Professor Cineas Santos

Como se fossem os guardiões do lugar, estão sempre por lá. Altivos, atentos, acesos. Por razões estratégicas, pousam sempre nas árvores mais altas ou nos postes. Naquela tarde, pousados ao lado das duas luminárias, pareciam adereços vivos. Aproximei-me para fotografá-los. Um deles voou e, ao voar, deixou cair uma pena. Depois de bailar no ar, a pena pousou suavemente aos meus pés.
 
Uma bela pena em dois tons: ferrugem e preto. Como pensamento não tem freio, lembrei-me das penas dos gansos usadas como instrumento de escrita na Idade Média. Manejadas por mãos hábeis, prestavam-se aos mais diversos fins: cartas amorosas, textos literários, sentenças irrecorríveis... 
 
Voltei a olhar a pena, bela e inofensiva. De repente, fui transportado para remota década de 1960, mais precisamente para o dia 12 de fevereiro de 1965. Foi naquela data que o Brasil tomou conhecimento de uma jovem cantora (18 anos de idade), muito magra, nariz adunco e voz agreste e inimitável. Naquela noite, no memorável Show Opinião, Maria Bethânia ganhou os céus do Brasil nas asas de “Carcará”, canção de João do Vale e José Candido. Na opinião de um crítico atento, “a moça não cantou, não interpretou a música com seus gestos teatrais. Ela simplesmente incorporou o espírito da ave de rapina e pairou nos céus do país que acabava de mergulhar na noite da ditadura militar”. O restante da história todo mundo sabe: Zé Kéti e João do Vale, parceiros da cantora no show, encantaram-se. Bethânia, com seu ar de rainha, ainda reina...
 
A pena do carcará agora está sobre a minha mesa de trabalho. Dia desses, vou tentar escrever com ela uma carta ao Tempo. Quero saber notícias do menino velho, que sempre errava no troco, que conversava com o vento e era tido como louco...  Lupicínio  Rodrigues tinha razão: “O pensamento parece uma coisa à toa/ mas como é que a gente voa quando começa a pensar”...

(fragmento do livro "Enquanto o Parque Não Vem")

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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 

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