Dos nove estados do Nordeste, só faltava o Piauí. Adiei por alguns anos a viagem, pois sempre aparecia alguma oportunidade aparentemente melhor: Pantanal Mato-grossense, Lençóis Maranhenses, Carnaval de Olinda ou mais uma das incríveis praias baianas. Mas em 2022 fiz uma promessa: visitaria no ano seguinte, ou no máximo em 2024, o estado que desse menos votos, proporcionalmente, ao inominável. E o Piauí, como sabemos, foi o vencedor: quase 77% dos piauienses disseram não ao fascismo.
Em uma eleição tão apertada quanto a de 2022, podemos dizer, sem medo de errar, que, se não fosse o Piauí, teríamos que amargar pelo menos mais quatro anos de um governo negacionista, que riu da morte de mais de 700 mil pessoas.
Afinal, botar os militares pra correr está inscrito no DNA do povo do Piauí. Foi lá que aconteceu a Batalha do Jenipapo, após 1822, e que assegurou o Brasil para os brasileiros. Armados apenas de foices, facões e velhas espingardas de caça, piauienses e cearenses enfrentaram o bem armado Exército português comandado por João José da Cunha Fidié e derrotaram os colonizadores na beira do riacho Jenipapo.
Além disso, o Piauí tem uma colônia numerosa e atuante em Brasília. Na quadra onde cresci, a SQN 312, conheci vários piauienses, e o mesmo aconteceu ao longo da minha vida na Capital Federal. Destaco Paulo José Cunha, Carmen Souto, Zé Mauro, Mauro Sampaio, Irlanda Rosal, dona Eugênia e seu Zequinha, estes últimos que me ensinaram o que é capitão no linguajar do Piauí. Aliás, é de Paulo José a engraçadíssima Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês, que me ajudou a escrever este texto.
No início dos anos 1980, a música que vinha do Nordeste estava no auge das paradas de sucesso: Fagner, Alceu Valença, Ednardo, Geraldo Azevedo, Amelinha, Zé e Elba Ramalho, Belchior e tantos outros. Naquela época eu descobri que alguns dos sucessos gravados não apenas por alguns destes grandes intérpretes, mas também por nomes como Milton Nascimento e Ney Matogrosso, eram composições de três irmãos piauienses que moravam em Brasília e que viveram parte de suas vidas na SQN 312! Pronto, era o que faltava para que eu guardasse o Piauí no lado esquerdo do peito.
Os discos e as músicas dos irmãos Clodo, Climério e Clésio passaram a fazer parte da trilha musical da minha geração. A beleza das melodias e a qualidade das letras desses músicos piauienses criaram no meu imaginário um espaço mágico para aquele estado do Nordeste. Enquanto a cultura de massa forjada no eixo Rio-São Paulo menosprezava ou tratava como piada tudo o que viesse do Piauí, na minha memória afetiva o estado foi ganhando uma dimensão gigantesca.
Antes da Internet o ato de pesquisar era algo penoso. Então eu sempre gostei de ter ao meu alcance dicionários, atlas geográficos e históricos e pelo menos uma enciclopédia. E foi nesse material que descobri pela primeira vez coisas incríveis sobre o Piauí, a começar pela vegetação, algo que sempre me atraiu sobre qualquer lugar do planeta.
No Atlas Geográfico do IBGE, que eu folheava praticamente todos os dias, uma das minhas diversões era decorar nomes de cidades, tipos de vegetações e de acidentes geográficos dos estados. E o Piauí sempre me chamou a atenção por sua floresta de carnaúbas. Que árvore seria aquela, que dava nome a toda uma floresta? Recorria então à Barsa para saber mais sobre aquela planta tão importante para a economia e a história de vários estados do Nordeste. Não é à toa que a carnaúba apareça nas bandeiras do Piauí, do Ceará e do Rio Grande do Norte. Nenhuma outra árvore foi tão homenageada quanto ela em nossos lábaros.
Inevitável, portanto, que ela, a carnaúba, chamasse atenção em minha primeira viagem ao Piauí. Claro que o estado tem praias lindas em seu pequeno litoral de 66 quilômetros. E que o Delta do Parnaíba seja uma imensidão de beleza preservada. Ou ainda que Teresina surpreenda pela beleza singela da cidade que se debruça sobre os rios Poti e Parnaíba. Mas os carnaubais do Piauí formam, de longe, a paisagem que me causou mais emoção. Tanto que tirei dezenas de fotos das carnaúbas, como um botânico maluco que tivesse descoberto uma planta nova.
Agora, pensando bem, a carnaúba e os discos de Clodo, Climério e Clésio sempre tiveram algo mais em comum, além do Piauí. Quando ainda não se usava o vinil para fabricar os bolachões, era a cera da carnaúba, extraída pelos sertanejos do Nordeste brasileiro, a principal matéria-prima da nossa indústria fonográfica. Talvez tenha nascido lá nos carnaubais a lírica que depois impregnou a poesia de Clodo, Climério e Clésio. E viva o Piauí!
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E para quem chegou até aqui, vou dizer o que significa "capitão", copiando a explicação da Enciclopédia de Piauiês do Paulo José Cunha:
“Comida amassada com as mãos. Geralmente as mães e as babás servem as crianças dessa forma. “Elísia Karinna, quando era pequena, só comia de capitão”. Quando o advogado Joaquim Almeida foi convidado pelo governador Wellington Dias (PT) para compor o secretariado, o senador e ex-governador Mão Santa, de oposição, comentou: “O Joaquim Almeida é o único do PT que come de garfo e faca, o resto só come de capitão”".
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Roberto Seabra, Jornalista - no blog: leitoressemfim.com
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