Na casa onde nasci, havia uma saleta escura. Uma espécie de corredor, ligando a sala grande à cozinha. Era ladeada por dois quartos: o dos meus pais e o da tia Odete. Parodiando o belo verso da Adélia Prado, era uma sala sempre anoitecendo. Os morcegos festejavam-na.
A cena, que durava apenas alguns segundos, volta e meia, me acorria à mente: três ou quatro mulheres saíam do quarto dos meus pais com um menino nos braços. Entravam na sala escura. Pareciam disputar a criança como se fosse um brinquedo. Riam e falavam, mas não se compreendia nada. O menino, um tanto rechonchudo, trajava uma jardineira branca com listras azuis, muito finas. Não parecia feliz em participar daquela disputa. Depois, tudo se apagava.
Um dia, perguntei à minha irmã mais velha se aquilo efetivamente acontecera ou se não passava de um sonho recorrente. Ela me pediu mais detalhes e, sem acreditar no que ouvia, disse - me: “Não é possível que você se lembre disso! O menino era você, poucos dias após o seu batizado. Você teria uns dois anos”. Aí, a surpresa foi minha: mas como aquele menino seria eu se, de um lugar insituável, eu assistia a tudo? Visivelmente comovida, a irmã amada afirmou: “Você, desde muito pequeno, tem essa mania de sair de si”. Está explicado.
(fragmento do livro O Aldeão Lírico)
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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