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Sabado, 04 de maio de 2024
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cantidiosfilho@gmail.com

24/04/2024 - 08h16

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Os Donos da Praça

 

Ali circulavam camelôs, malabaristas, passantes, desocupados (Foto: Cineas Santos)

 Ali circulavam camelôs, malabaristas, passantes, desocupados (Foto: Cineas Santos)

Houve um tempo, não muito distante, em que a Praça João Luís Ferreira era uma espécie de feira livre. Ali se vendia quase tudo e, por lá, circulava uma plateia bastante diversificada. Havia camelôs, malabaristas, passantes, desocupados, descuidistas... Como na praça há uma parada de ônibus, havia “fregueses” o dia inteiro.

Havia duas bancas de jornal, uma delas, a do Tomaz, ponto de encontro dos que gostam de ler. No centro da praça, duas bancas de frutas onde se podia comprar o que havia de melhor no gênero. O dono das bancas -  seu João -   fazia questão de afirmar: “Frutas selecionadas a dedo”. Mangas, laranjas, abacaxis e magníficas bananas-maçãs. Uma vez por semana, eu comprava ali a minha cota de bananas. Tratava-me com apreço e cordialidade.

Sob uma moita de bambus, um “peruano”, com cara de cearense, tocava canções tristíssimas numa flauta andina. Um garoto magro e saltitante   apregoava sua insólita mercadoria: “por um realzinho, arremedo qualquer passarim”... Em frente ao edifício do INANPS , dois engraxates disputavam os fregueses. Um, negro, carapinha branca, cheio de sabedoria e razão. O outro, quase albino, taciturno, cigarro pendurado na boca, ostentava uma corcova de dromedário velho.

Circulando, com elegância e desenvoltura, um “empresário avícola”, leia-se: um vendedor de galinhas. O cidadão fazia justa ao título de empresário: vestia-se como um caubói do asfalto: calça jeans, botas de cano longo, chapéu preto e um cinturão com uma fivela dourada. A dois metros de distância dele, o “carregador do pau das galinhas”. Um homem negro, triste, com sandálias rotas e um chapéu de palhas encardido.

Como gosto de feiras livres, eu parava às vezes para apreciar aquela fauna tão diversificada. O personagem mais interessante  da praça  era um homem de meia idade, sempre de terno cinza, camisa branca, sapatos pretos. Dir-se-ia um sósia do Ronald Golias não fosse um imenso cisto no nariz. Pervagava pela praça como um fiscal atento: olhava tudo, conferia tudo, sem dizer nada. Nunca o vi conversando com ninguém. Uma manhã, parei para comprar minhas bananas, que estavam tentadoras. O homem-cinza estava parado em frente à banca. Olhava fixamente para as frutas. Resolvi puxar conversa: seu João, me avie uma dúzia de bananas. Mas antes, me dê duas dessas que já estão ao ponto para eu dividir aqui com o meu parceiro. E apontei para o homem-cinza. O moço olhou-me com severidade, recuou uns dois passos e, sem levantar a voz, mas com firmeza, afirmou: “Isso não. Isso nunca”. E afastou-se rapidamente até misturar-se à multidão. Um tantinho constrangido, olhei para o vendedor de frutas e sorri. O velho limitou-se a dizer: “Se avexe não, professor: ele não bate bem”.

Com a reforma da Praça, a fauna se dispersou. Nunca mais vi o homem-cinza.  E, sem ele, a praça nunca mais foi a mesma.

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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 

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