Zygmunt Bauman, no início de 2016, portanto, poucos meses antes de falecer aos 90 anos, comentava em entrevista ao jornal espanhol El País sobre seu livro Cegueira Moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida, escrito em parceria com Leonidas Donskis e publicado em 2015. Nele, os autores alertam para a perda do sentido de comunidade em um mundo cada vez individualista, destacando que o mal não se concentra em polos específicos, nem tem como fator deflagrador somente situações de guerra, mas que se manifesta principalmente na cotidianidade, na insensibilidade para o sofrimento do outro, na ausência completa de empatia. A exemplo de Edgar Morin, os autores também falam em miopia ética, na adoção de uma ética de utilidade que só serve a quem se beneficia dela.
Hoje, portanto, revisito a entrevista de Bauman, porque diferentemente de nossas esperanças no final de 2016, para que 2017 fosse um ano completamente diferente, como se fosse possível modificar a natureza do mal que vem tomando toda nossa sociedade; o presente ano tem se mostrado em seu início, tão ou mais complicado do que o anterior.
O ódio, a cegueira moral e a falta de ética, cobrem de névoa escura a sociedade atual. A inversão de valores parece ser uma constante. O tribunal foi instalado no coliseu das mídias sociais. Tudo é publicizado sem escrúpulos, sem cuidados e sobretudo, sem empatia. Condenações e lixamentos virtuais de pessoas públicas ou não, vivas ou mortas, são práticas comuns. Todo tipo de mensagens nos chegam por diversas vias e nos levam para a experiência do medo de que eu tanto falava semana passada.
Os valores humanos foram esquecidos e trocados pelos valores do mercado, pela vida fútil e imagética. Preocupações com o aparecer em detrimento de preocupações com o fazer o bem, com o ajudar, com o promover a vida em comunidade. Aliás, muitas ações sociais realizadas por empresas e algumas pessoas, não passam de marketing social restrito, porque apenas visam agregar valor e dar visibilidade, distando da verdadeira promoção do bem comum.
Nesse ponto, Bauman vem ao longo dos anos se colocando e se assumindo como um filósofo crítico e pessimista sobre muitos aspectos da sociedade, sobretudo, da sociedade de consumo. Em Vida para o Consumo publicado há alguns anos, o autor denuncia a transformação das pessoas em mercadorias, já em que em sua visão, as pessoas não apenas são alvo do mercado, mas promotores das mercadorias e até mesmo se tornam as próprias mercadorias que promovem, divulgam e internalizam, se tornando outros ao adotarem estilos de vida propagados pelo marketing.
A entrevista a El Pais focou em algumas das principais temáticas trabalhadas pelo autor na atualidade. Muitas delas apontadas em seu último livro escrito em parceria com Carlo Bordoni e que se denomina Estado de Crise, cujo lançamento está previsto no Brasil, para o dia 16 de janeiro. Nesse trabalho os autores analisam o contexto em que se desenrolam os grandes problemas da atualidade. Para Bauman e Bordoni é preciso entender os mecanismos que forjam os conflitos a fim de se estabelecer novos mecanismos de negociação.
Nesse panorama; perguntado sobre, se considera a desigualdade social um câncer em escala mundial, uma “metástase” e se a democracia está em perigo, Bauman respondeu que o que se passa agora e que chamamos de crise da democracia, é na verdade o colapso da confiança, uma crise das instituições que se colocam como pilares da democracia, sobretudo, porque vigora um sentimento comum de que não apenas os líderes são corruptos, mas também que são incapazes, incompetentes. O escritor chama a atenção de forma enfática para o fato de que o poder se globalizou, mas a política mantém as práticas provincianas. “ O fenômeno é global, mas atuamos em termos paroquianos”.
Sobre segurança e liberdade, Bauman afirma que são dois valores de difícil conciliação, normalmente se tem que dosar os dois, ou renunciar a um para fazer triunfar o outro, contudo, “ fazem 40 anos que se acreditava que a liberdade tinha triunfado e vivíamos uma orgia consumista. Tudo parecia possível mediante o crédito [...]. Tem sido, portanto, um despertar amargo desde 2008, quando terminou o crédito fácil. A catástrofe que veio, o colapso social, foi para a classe media, que foi arrastada rapidamente ao que chamamos de estado precário”. Para Bauman, os conflitos que se formaram no eclipse da sociedade de consumo fácil, acarretaram em antagonismos, não mais apenas entre classes sociais, mas de cada individuo para com a sociedade. Para o autor, não somente falta segurança, mas também liberdade. Vale ainda lembrar que em Tempos Líquidos, livro publicado antes da crise de 2008, Bauman já alertava para a insegurança como marca dos tempos líquidos-modernos, destacando que a violência tem fontes distintas e se alastra de muitas formas pela sociedade.
Em outro momento da entrevista, ao se ver indagado sobre porque considera a ideia de progresso um mito, Bauman pondera que estamos vivendo em um hiato, entre uma etapa em que tínhamos certeza de que o futuro seria melhor e outra em que as velhas formas de atuar já não dão conta dos problemas postos. Hoje procuramos novas formas de fazer que devem conviver com uma política de austeridade que se impõe a grande parte da humanidade.
Perguntado sobre sua posição cética acerca do ativismo praticado nas redes sociais, denominado “ativismo de sofá” e ainda sobre a realidade nas redes sociais, Zygmunt Bauman é enfático ao afirmar que existe uma grande diferença entre a comunidade real e as comunidades criadas em rede. “ Porém não se cria uma comunidade, se tem ou não; o que as redes sociais podem criar são substitutos. A diferença entre a comunidade e a rede é que você pertence a comunidade, porém a rede pertence a você. Pode adicionar amigos e pode deletar, pode controlar as pessoas com quem se relaciona. As pessoas se sentem um pouco melhores porque a sociedade é uma grande ameaça nesses tempos de individualismo. Entretanto, nas redes é tão fácil adicionar e deletar que não necessitamos de habilidades sociais”. Para Bauman as redes não ensinam a dialogar, normalmente deixamos em nosso perfil somente quem conosco concorda, assim fechamos os olhos para outros pontos de vista, fechamos os olhos para informações esclarecedoras, não nos abrimos para uma criticidade necessária. Nas palavras do autor, “ muita gente usa as redes sociais não para unir, não para ampliar seus horizontes, mas sim ao contrário, para encerrar-se no que chamo de zona de conforto, aonde o único som que ouvem é o próprio eco de sua voz, aonde só se vê os reflexos de sua própria cara. As redes são muito úteis, mas são uma armadilha”.
ps.: este texto foi publicado parcialmente em janeiro de 2016
Ana Regina Rêgo
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