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Segunda-feira, 18 de novembro de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

15/02/2018 - 10h08

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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

15/02/2018 - 10h08

Meu Deus, meu Deus está extinta a escravidão?

O que é arte? Essa pergunta no Brasil de hoje é bem polêmica. Todavia, há um sentimento comum, mesmo a quem acha que arte é algo que deve emocionar, sem fazer pensar, sem politizar. E esse elo compartilhado é exatamente a força da emoção. Arte emociona, se não a todos, mas a alguém. Alguém que foi atingido pela mensagem expressa pela obra.
 
Eu, no entanto, concordo plenamente com Orson Wells que em artigo intitulado Não há arte domesticada, publicado na edição de abril/maio de 1953, na revista francesa La  Democratie Combattante, em que fala abertamente da forte censura que o Macartismo impunha aos artistas e à imprensa. Fala da cooptação de Hollywood  e da submissão da indústria do cinema aos ditames do governo e do mercado. Para ele, o que se produzia então, no cinema,  não era arte, porque nenhuma arte pode ser domesticada.
 
E do que falo hoje nesta coluna? Falo da emoção, falo da beleza, falo da arte expressa através de uma grande festa popular, o carnaval. Meu título hoje é um plágio literal do título do enredo da Escola de Samba Paraíso da Tuiuti. A folia de momo tem sido, no Brasil, historicamente, o lugar do entretenimento, do culto ao corpo, da exploração sexual da mulher, mas também,  o lugar da denúncia social, o lugar do fazer pensar, do chamar atenção para as mazelas que os governos impõe ao nosso povo.
 
A Escola de Samba Paraíso da Tuiuti até domingo (11) era pouco conhecida do povo brasileiro, visto que sua visibilidade pouco extrapolava o espaço carioca, já que a grande mídia de “referência” somente destaca as maiores escolas que, recorrentemente, se revezam nos primeiros lugares das premiações dos desfiles anuais. 
 
Em 2017 a Paraíso da Tuiuti ficou em 12º lugar e quase foi rebaixada. E esse ano veio para fazer história. Veio para emocionar, não só o povo carioca e turistas nas arquibancadas do sambódromo, mas para fazer o Brasil cantar, para fazer o Brasil inteiro gritar, para emocionar.
 
O enredo é sem dúvida o vencedor para o povo brasileiro, todavia, no momento em que escrevo estas linhas a apuração ainda não teve início, logo não posso prever o resultado que sairá em algumas horas, visto que necessito enviar o artigo para o jornal( ontem quando escrevi a coluna para o Jornal não sabia do resultado, hoje comemoramos o segundo lugar). Contudo, o resultado da apuração não importa, o que realmente importa é que poucas escolas de samba, possuem hoje, a força para emocionar uma nação. E a Tuiuti teve e entrou para nossa história, como a voz de um povo, novamente açoitado por incontáveis injustiças sociais.
 
Cantamos e choramos emocionados com “Meu Deus! Meu Deus! Se eu chorar não leve a mal. Pela luz do candeeiro. Liberte o cativeiro social”.
 
A música composta por Cláudio Russo, Moacyr Luz, Dona Zezé, Aníbal e Jurandir, permitiu ao jovem carnavalesco da Escola, Jack Vasconcelos,  uma composição de alas, alegorias, fantasias e carros alegóricos que foram estrategicamente dispostos e traziam uma mensagem dialética entre a escravidão passada e presente. A comissão de frente veio com um recado forte, pois, infelizmente, a escravidão ainda vive nesse país, inclusive, com o aval do Supremo Tribunal Federal. Escravos acorrentados e açoitados e Pretos velhos emocionaram pela beleza da dor encravada na história de um povo, encravada na história do Brasil. A beleza denuncia que os negros nesse país são os mais injustiçados, são os mais assassinados e que as mulheres negras lideram o ranking das injustiças.
 
A Tuiuti calou políticos corruptos e insensíveis aos problemas e necessidades do povo. A Tuiuti calou as classes economicamente abastadas que não conseguem enxergar que somente com igualdade social teremos um país sem violência e justo. A Tuiuti levou o pato da ignorância política para a avenida e fez a maior rede de Televisão da América Latina transmitir denúncias contra si, denúncias claras de seu poder manipulador.
 
Inúmeras matérias jornalísticas sobre a performance da Tuiuti podem ser localizadas nos sites e portais de todo o Brasil. Em uma delas, a Sra. Ariolana Conceição da comunidade Tuiuti no Rio de Janeiro, em entrevista a Geissa Evaristo do site www.carnavalesco.com.br , afirmou que  “ O samba é maravilhoso! [...]. O melhor é que ele exalta a nossa raça, as nossas origens conta a nossa história, do negro e do Brasil. Retrata a África em poesia, tem ritmo, tem balanço, tem melodia e tem emoção acima de tudo. Ficará para história como outros sambas-enredos”.
 
Esse depoimento sincero e apaixonado, de uma moradora da comunidade Tuiuti, reflete o sentimento do povo brasileiro que estava sem voz, que tinha e tem em intelectuais vozes em defesa, mas que não chegam ao povo, que não conseguem dizer ao povo claramente o que é a escravidão atual. Denúncias são feitas, mas não há comoção coletiva. A Tuiuti conseguiu, por uma hora, em rede nacional e transmissão internacional, ser a voz de um povo sem voz. Conseguiu denunciar a farsa do golpe, a farsa do Presidente, a farsa da reforma trabalhista, e a escravidão em que vive o brasileiro em seu dia-a-dia.
 
As carteiras de trabalho velhas refletiam o abandono do povo, agora, novamente, sem direitos e de volta ao passado,  pois o fruto do trabalho não paga a conta da comida.
 
Com arte, beleza, emoção e estratégia, a Tuiuti conseguiu levar para a passarela do samba, o sofrimento, a força de um povo e a glória de um passado, em confronto e em encontro com as injustiças de hoje.

Só posso aqui parabenizar e AGRADECER a todos que fazem a Tuiuti pela emoção e por ser a voz de um povo brasileiro injustiçado de norte a sul. Fiquem com a Tuiuti! Ela nos representa!
 

Meu Deus, Meu  Deus está extinta a escravidão?
 
Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz
Eu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente
Ê Calunga, ê! Ê Calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro nem feitor
Amparo do Rosário ao negro benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor
E assim quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra bondade cruel
Meu Deus! Meu Deus!
Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social
 
Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação

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