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Segunda-feira, 18 de novembro de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

08/03/2018 - 09h31

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Ana Regina Rêgo

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08/03/2018 - 09h31

A condição feminina

“Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher”.
( Pitágorascitado por Simone de Beauvoir)
 
O meu texto de hoje, dia da mulher,  mais do que um elogio à condição feminina, pretende chamar, para a luz e para o debate, às construções históricas, os discursos prontos, os preconceitos e as naturalizações sobre o status feminino. O espaço é pequeno e a pretensão grande, mas a intenção é válida, assim continuo.
 
 
O pensamento de Pitágoras acima posicionado e que abre o livro O Segundo sexo: fatos e mitos de Beauvoir, nos revela que desde à antiguidade, a mulher foi relegada a um lugar secundário nas sociedades; para além disso, a mulher foi construída, discursivamente, em cada religião (entenda-se fala incontestável de Deus) de uma pós-antiguidade, como o ser que carrega a mancha do mal. Um ser impuro, indigno de aproximação direta com qualquer Deus. Esse pensamento seria potencializado durante a alta idade média, quando teremos não só a Santa Inquisição e a caça às bruxas, como o retorno da proibição de que homens que se dedicassem ao pensamento e ao espírito, deveriam procurar se manter distantes das mulheres, sempre impuras e portadoras do desejo, que abre as portas para o mal.
 
As mulheres foram confinadas nos espaços privados, com o plus de se tornarem, em alguns casos, rainhas de suas alcovas. Após a porta do quarto, seus poderes diminuíam. Após a porta de entrada da casa, seus poderes acabavam. Essa restrição espacial, assim como, a definição das funções familiares, restringiu o acesso das mulheres aos espaços de poder, o que por sua vez, nos roubou o direito à construção de uma memória histórica e participações determinantes na história da humanidade.
 
A história política, por exemplo, que aprendemos nos bancos da escola, escrita quase sempre a partir de condições de poder, de quem pode determinar o destino dos vencedores, raramente, apresenta participações femininas. Contudo, esse silenciamento não se restringe ao campo político, se falarmos no campo artístico, o espaço feminino está circunscrito aos nus dos quadros dos grandes nomes da arte. E, mesmo quando alguma mulher mais ousada rompiaas estruturas e enfrentava o machismo arraigado nas sociedades, sua memória era logo cuidadosamente ultrapassada e apagada pelos homens que sobreviviam a ela.  De suas memórias ficavam somente suas ligações com o sexo masculino, através das quais as máximas discursivas construídas secularmente, permanecem, por exemplo e a saber: “...por trás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”.
 
Quando Beauvoir lançou seu livro na década de 1940, ela já inicia referindo-se ao feminismo, cujo debate à época, parecia comodamente encerrado. Suas perguntas reverberam vozes que consideravam o feminismo ultrapassado, visto que, supostamente, não haveria mais problemas de disputas de espaços entre homens e mulheres. Beauvoir vem para  polemizar e levantar a poeira que foi colocada debaixo do tapete e que hoje, quase 70 anos depois da primeira edição de O segundo sexo, continuam em pauta na mídia e na sociedade.
 
Discursos que tentam limitar não somente o espaço, mas tentam determinar o comportamento e, sobretudo, regular o corpo feminino voltaram com toda carga. É cada vez mais gritante, o número de pessoas supostamente, educadas e esclarecidas que ao se tornarem adeptos de igrejas conservadoras, são convencidas e passam a tentar convencer os outros de que o lugar da mulher é de subserviência ao marido. O lugar da mulher é no lar. O lugar da mulher é na cozinha e no tanque. Sim, esses também podem ser lugares de mulheres. Desde que a mulher possa escolher. Desde que a mulher não seja constrangida, nem transformada em objeto ou máquina de estimação.
 
Ouço de algumas amigas, pessoas esclarecidas, que não existem mais diferenças entre homens e mulheres. Que é uma falácia que homens ganham salários maiores que mulheres, porque para elas isso é uma realidade. Isso de fato me cansa. Como explicar para pessoas que nunca saíram de seus quintais floridos que o mundo não se restringe ao seu espaço e que as relações de poder se estruturam historicamente e conjunturalmente a partir de uma posição superior do poder masculino. E que pensamentos como estes só servem para nos manter submissas, referendando o que não se quer que se conheça,nem que se revele socialmente.
 
No Brasil a maioria das mulheres, mesmo exercendo funções iguais às dos homens ainda percebem remunerações inferiores, sobretudo, as mais pobres e negras.
 
Mas as injustiças que rodeiam o segundo sexo não param por aí. No Brasil uma mulher é estuprada a cada 12 minutos. No Brasil uma mulher é morta a cada duas horas. São dados da ONU-Organização das Nações Unidas de 2016, sobre os quais já falei, inúmeras vezes nesta coluna. Ou seja, vivemos em guerra. Ou seja, somos violentadas, somos assassinadas e as próprias mulheres naturalizam a condição feminina como inferior, como se efetivamente fôssemos um segundo sexo. E o pior, somos responsabilizadas, por uma sociedade hipócrita, pelos crimes que sofremos, incluindo, estupros e assassinatos.
 
O mais interessante,no entanto é que a falta de informação, principalmente, na classe média e nas classes superiores é tão grande, que feminismo voltou a ser palavrão. Feminismo é entendido de forma naturalizada como femismo, o que coloca no mesmo “saco” machismo e feminismo, que são potencialmente divergentes. Visto que o machismo se impõe de forma superior sobre o sexo feminino, enquanto o feminismo luta por direitos e deveres iguais e compatíveis com a condição da mulher.
 
Lutar por direitos iguais para todas as mulheres e todxs que se identificam com a condição feminina é visto como algo violento, realizado por mulheres normalmente, consideradas agressivas e/ou loucas; por pessoas com discursos misóginos, que tentam nos desqualificar. E isso atinge, tanto mulheres em condições de poder como no caso da ex-Presidenta Dilma Rousseff, como com qualquer uma de nós que ouse reclamar por direitos, que ouse denunciar assédio, que ouse denunciar violências. Somos taxadas de loucas!
 
Então sejamos todxs, não apenas feministas, mas sejamos todxs loucas, pois só com coragem para enfrentar tanto conservadorismo que deseja tornar a mulher, sua voz, sua arte, sua força e seu poder reclusos, que poderemos mudar realidades e nos tornar portadoras de verdadeira essência.
 
Por fim, para  nos homenagear e, principalmente, nos fazerpensar, termino como comecei: com Beauvoir, para quem

Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência, sente-a como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre como o essencial e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial.
                                  

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