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Domingo, 17 de novembro de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

13/09/2018 - 09h31

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Ana Regina Rêgo

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13/09/2018 - 09h31

A naturalização da violência simbólica

- Das decisões do STF ao voto inconsciente –

Fico pensando em Thêmis, deusa que carrega a venda da imparcialidade, ao ouvir a decisão do Supremo Tribunal Federal-STF, recusando a denúncia de racismo apresentada pela Procuradoria Geral da República-PGR contra o candidato Bolsonaro. Na verdade, acredito que Thêmis já desistiu da justiça (injusta) brasileira faz muito tempo, sobretudo, do STF, que deveria ocupar o lugar do exemplo, e, como única corte midiática do mundo, tornou-se palco de exibições e decisões esquizofrênicas, em que o texto da lei, é substituído por interpretações esdrúxulas, que nem a hermenêutica, seja ela metodológica ou filosófica, ou, mesmo a análise de discurso, conseguem dar conta.
 
Ao recusar a denúncia, o Supremo Tribunal Federal, como tem feito em muitas outras decisões recentes, reafirma a naturalização da violência simbólica que tem sofrido o povo negro em nosso país ao longo dos séculos. Ao recusar a denúncia, o STF desrespeita grande parte da população brasileira e autoriza simbolicamente, a violência física que sofrem os negros, e, principalmente, as mulheres negras no Brasil. Ao recusar a denúncia, o STF burla a própria lei que determina que crime de racismo é inafiançável e imprescritível, criando um precedente máximo para todas as injúrias que de agora em diante possam ocorrer, contra a população afrodescendente.
 
Mas o que é violência simbólica? Como bem nos esclarece Pierre Bourdieu, sociólogo francês, a violência simbólica se estrutura através dos tentáculos sociais e faz com que aceitemos como naturais, formas culturais de dominação, em diversos níveis. São pensamentos que se convertem em práticas entendidas como tradicionais e naturais, em que o poder de alguém se manifesta e surge como o “normal” (norma–doxa) para outros.
 
Segundo Bourdieu, a naturalização da história, entendida como uma condição em que os fatos e as práticas sociais passam a ser entendidas como “verdade”, mesmo situando-se em oposição a esta, se dá por meio da violência simbólica. Obviamente, os grupos dominantes procuram argumentos (que nem necessitam ser profundos) para seduzir e convencer os grupos dominados de que este é o único caminho.
 
É através da violência simbólica que a dominação masculina tem se estabelecido ao longo dos milênios. É por isso, que ouvimos mulheres afirmarem que homem pode tudo e mulher tem que ser casta, recatada e de preferência que se mantenha como rainha da esfera privada, sem direitos na esfera pública. E quando a mulher ousa ultrapassar o espaço do privado e se lançar no público, ou o faz, sob a tutela do marido mantendo a imagem de fiel ao status quo do pensamento masculino, ou, é denominada de masculinizada, louca por discursos misóginos que surgem de todos os lados. Foi pelas mãos da violência simbólica que as mulheres ficaram à margem da história, foi pelas mãos da violência simbólica que foram relegadas a escravidão em inúmeras sociedades, ou, situadas como cidadãs de segunda categoria, sem direitos, como ainda ocorre em inúmeros países do mundo, inclusive, no nosso em que somos assassinadas e estupradas a cada hora.
 
Por outro lado, foi através da violência simbólica que os negros escravizados foram ao longo dos séculos, no Brasil e no mundo ocidental, sobretudo, no hemisfério norte,situados em condição sub-humana, em que não só a identidade e a liberdade lhes foi negada, mas foram obrigados a conviver com uma construção simbólica que os colocava como não dotados de inteligência igual ao do homem branco, discurso que visava autorizar o branco a escravizar o negro, perante à sociedade não esclarecida da época. Nessa construção discursiva social, através da qual a violência simbólica que autorizava a violência física, se estruturou, inúmeros vocábulos foram criados e a linguagem serviu, para naturalizar a condição da dominação branca. Tudo que é ruim se situa como negro, tudo que é bom, se situa como branco. Mas ninguém se pergunta quem, quando e onde definiu essas construções. O indígena também é alvo da mesma violência, dos índios, dizem, os dominantes: herdamos a preguiça e a indolência; quando na verdade herdamos a verdadeira essência do Brasil.
 
O imenso problema da violência simbólica é que ela autoriza a violência física porque se entende que, quem tenta desnaturalizar ou esclarecer, está na verdade infringindo alguma lei divina, quando na verdade o coitado de Deus é tão somente usado a bel prazer dos humanos, sobretudo, dos que matam e/ou ensinam a matar em seu nome.
 
É por isso que à mulher estuprada é imputada a culpa pelo crime que sofre. É por isso que os negros são os primeiros a serem perseguidos e abordados em uma ronda policial. É por isso que os homossexuais são assassinados diariamente em nosso país. Tudo isto, porque se naturalizou determinadas construções sociais como sendo “normais”, como dito, mesmo em oposição à verdade.
 
A violência simbólica passa pela regulação dos corpos que tanto tenho tratado nesta coluna, regulação cujo discurso desperta o ódio em quem não se conforma com as escolhas e práticas do outro, mesmo que esse outro seja um desconhecido. Regulação que relega à mulher o lugar da recatada e sempre de pernas fechadas, que obriga a mulher a usar um aparato medieval para proteger os seios, porque a sexualidade guia a dominação masculina. E ao mesmo tempo, autoriza o homem a estuprar as mulheres e  fazerxixi na rua, naturalmente.
 
Então a violência simbólica se transmite pela via da tradicionalidade, se pensarmos numa perspectiva do filósofo Paul Ricoeur, mas se transmite enquanto tradição que carrega a “verdade”, também pensando com Ricoeur. As vias de transmissão passam pelos processos educacionais formais, religiosos e familiares em que, minimalisticamente, se aprende que mulher, negro e homossexual não possuem nem direitos, nem história.
 
Na contemporaneidade, entretanto, a mídia tem sido a protagonista da reafirmação de muitos estereótipos em concordância ou discordância com os demais espaços de educação e transmissão de discursos que autorizam a violência simbólica.
 
Então, retornando ao nosso tema principal, quando o Supremo Tribunal Federal age contra a lei vigente e contra os direitos dos negros, está autorizando a violência física, o que nos levará de volta à barbárie. Como pode a máxima instância do poder judiciário somente olhar para seu “umbigo” e deixar a população entregue à própria sorte? Mas por outro lado, como podemos esperar algo melhor de um poder que autoriza o trabalho escravo, que aumenta o próprio salário e condena os direitos trabalhistas da maioria? Como bem afirmou o personagem de Al Pacino (John Milton) que era “lúcifer” encarnado, quando perguntado por seu filho Kevin (personagem de Keanu Reeves), sobre o porque de escolher o direito e a justiça como o lugar para estruturar seu reino do mal na terra; pois bem, o personagem demoníaco responde, que a justiça é o lugar em que se pode cometer injustiças dentro da legalidade, em que se pode legalizar o mal, contudo, isso já nos alertava Nietzsche ainda no século XIX.
 
Saindo do STF em direção ao seu voto, vale pensar naquilo que já abordei aqui inúmeras vezes e que trata da inconsciência de si. Esse fenômeno da inconsciência aliado à violência simbólica vigente, tem feito mulheres, negros e homossexuais declararem seu voto a candidatos que pregam a violência, que fazem apologia ao estupro, que são machistas declarados e que desejam as mulheres sempre subjugadas, que são homofóbicos em todos os momentos, desde a piada ridícula ao assassinato autorizado pela violência simbólica.
 
Por fim e pelo que li das propostas, alguns candidatos não apenas leram, mas estão aplicando com sucesso, tanto as dicas de MeinKampf, como a receita de JosepGoobels, atingindo diretamente a população, sobretudo, a classe média, que aceita a violência simbólica como natural.
 
 
 
 

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