

Muniz Sodré em seu livro As estratégias sensíveis falando sobre o campo da comunicação, nos diz logo de início, que em um ambiente de múltiplas estratégias que estabelecem uma relação comunicativa é importante reconhecer a relação entre duas subjetividades. “O singular não é o individual, nem o grupal, mas o sentido em potência- portanto, é um afeto, isento de representação e sem atribuição de predicados a sujeitos- que irrompe num aqui e agora, fora da medida (ratio) limitativa”.
Este autor nos fala sobre a manipulação dos afetos da audiência realizada pela mídia e pela propaganda. Para ele, esse processo muitas vezes se passa em “condições não apreensíveis pela consciência”. É certo, porém, que existe uma diversidade de modos de sentir, como nos diz Muniz Sodré, em que a singularidade de cada experiência transforma o sensível “em um terreno brumoso para a consciência do sujeito auto-reflexivo, porque o lançam numa imediatez múltipla e fragmentada, onde os julgamentos tendem a ser mais estéticos do que morais”.
A centralidade midiática e cultural na sociedade do século XXI que se faz por meio dos processos e das plataformas digitais de produção de conteúdo e promoção da visibilidade que doamos aos conglomerados proprietários das referidas plataformas, que por sua vez, nos vendem integralmente ao mercado, o que inclui venda de narrativas produzidas, imagens e, principalmente, informações e dados, é sinalizadora do que Muniz Sodréhá quase duas décadas denominou de nova “sociedade da cultura” que cultiva as possibilidades sensoriais ou afetivas e de certa forma direciona para uma conformação estética da dimensão sensorial.
Imersos numa sociedade imagética que subjuga corpos e espíritos, experimentamos inúmeras formas de administração do afeto coletivo e não nos damos conta de quem realiza a gestão política das emoções coletivas, apenas seguimos. Mercado e Estado hora parceiros, hora em disputa, estão no comando da emissão de narrativas comunicacionais e/ou estéticas que nos levam a experiências sensíveis distintas e às quais respondemos conforme nossos aparatos para identificação do sensível, seja comunicativo ou estético, mas quase sempre político.
Jacques Rancière em outro ambiente apresenta em vários momentos o debate entre a política e a estética e trabalha a conceituação do sensível em um ambiente em que mesmo em tensionalidade pode haver diálogo. Para este pensador francês, deve-se entender “ a partilha do sensível que dá forma à comunidade. Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas”.
Diante da estetização da política vivenciada, por exemplo, nos regimes totalitários e ditatoriais do século XX que fez da arte, da comunicação e da tecnologia poderosas armas de poder e controle, assim como, diante da capacidade do capital de se tornar flexível a ideologias e praticar uma adaptação política e estética, vale pensar ocampo cultural como um lugar de tensionalidades e resistência que negocia visibilidades e gosto. Para Rancière, a arte se coloca como modelo político de ação e formação do comum, do que partilhado se transforma em exemplo de ação política.
Em outra vertente temos em Bourdieu uma visão do campo cultural como um lugar em que se pratica a distinção social, enquanto forma discriminatória e onde se impõe modos hegemônicos de poder que passa do político, do estético e chega ao intelectual, por exemplo.
Para além e ao largo das concepções críticas do campo cultural e das possibilidades intervencionistas do político, do Estado e do Mercado neste campo, acimamencionadas, vale pensar o papel da arte em nossa contemporaneidade e na necessidade de compreender o campo artístico como o lugar da resistência de que falávamos anteriormente.
Percebam que a cultura foi uma das primeiras áreas atacadas pelo atual governo brasileiro no dia 01 de janeiro de 2019, quando logo após a posse, o Sr. Presidente extinguiu o Ministério da Cultura, cuja história em nossa redemocratização tinha somente 3 décadas. Além das medidas institucionais de desmonte do setor cultural, assim como, de outros aqui já tratados, como a educação superior pública e gratuita; foram tomadas medidas de cunho moral através do aparato comunicacional do governo que compõe-se de uma rede de sites, perfis em redes sociais e grande produção mercadológica de narrativas audiovisuais de ataque às artes como algo que perverte a moral de uma família brasileira modelar. A partir dessas investidas cujas narrativas se concentram em um conservadorismo calcado em uma moral pregada por algumas igrejas neopentecostais ou mesmo por alas mais radicais do catolicismo, as manifestações artísticas passaram a ser atacadas em museus, exposições e shows musicais em todo o país.
Por outro lado, a lei Rouanet e vários dispositivos de incentivo à cultura como os Fundos e editais, passarampor reformulações para, por exemplo, aceitar que eventos de cunho religioso fossem inseridos na relação dos possíveis beneficiados pelo incentivo fiscal público, em detrimento da arte de vanguarda, ou mesmo, de qualquer manifestação artística. Vale, portanto, ponderar que extrapolando todos os defeitos que o sistema de incentivo à cultura nesse país acumula ao longo de décadas e que apontei em tese de doutorado e livro publicado nos dois lados do Atlântico; o atual governo promove a implosão do sistema a partir de dispositivos internos em que a cultura enquanto campo de expressão identitária plural de nossos povos, é expulsa de seu próprio lugar.
Todavia, mais do que nunca o setor cultural que é responsável por quase 3% do PIB brasileiro e onde atuam cerca de 250 mil empresas, mostra sua força em um momento de crise sanitária provocada pela pandemia da COVID 19. Todo o isolamento do povo brasileiro é alimentado pela arte de milhares e milhares de artistas das inúmeras e variadas manifestações artísticas/culturais.
A arte oferece refúgio aos corações em luto por mais de 52 mil brasileiros mortos, a arte oferece conforto aos brasileiros angustiados e pela incerteza do futuro que nos ronda.
Acredito que seja o momento da sociedade retribuir aos nossos artistas, um pouco do que compartilham conosco e nos comovem e chegam ao encontro do sensível. Solidariedade é o tema e é a ação. Ajude a quem nos ajuda a viver e a sobreviver nesses tempos de pandemia. Fica a dica!
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