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Domingo, 17 de novembro de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

02/07/2020 - 14h16

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Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

02/07/2020 - 14h16

​A face cruel da precarização do trabalho imposta pelos aplicativos

 

​No momento em que escrevo este artigo, manhã de quarta-feira (01), tem início o movimento Breque dos Apps em que os motoristas/entregadores fazem greve por melhores condições de trabalho. Finalmente, os cidadãos que se dedicam a trabalhos que objetivam facilitar a vida de muitos e que o fazem ou por imposição das sucessivas crises econômicas que o Brasil vem passando, ou por opção e por terem acreditado na narrativa sedutora dos aplicativos, de que os motoristas são parceiros empreendedores e não funcionários, se manifestam de forma consciente e se tornam visíveis para a sociedade.

 O movimento Entregadores Antifacistas
liderado por Paulo Lima, conhecido em São Paulo como o Galoreivindica nesse momento, segurança para o trabalho, fim do sistema de bloqueios indevidos, melhores remunerações e o fornecimento de alimentação, visto que com uma jornada de trabalho de até 12 h, sobretudo, nesse momento de pandemia, em que a demanda para as entregadores cresceu consideravelmente, não é possível ir em casa para comer e não é viável economicamente comer em restaurantes.

​Segundo Galo, os entregadores de aplicativos vivenciam o dilema de passar fome levando comida nas costas. Outra denúncia feita pelo líder do movimento é que os aplicativos, como não possuem nenhum contrato trabalhista com quem trabalha para eles, simplesmente bloqueiam, os “empreendedores individuais/entregadores” que desafiam o sistema e tentam denunciar as condições precárias de trabalho. 

​É bem verdade que temos uma grande parcela populacional usufruindo dos benefícios dos milhares de aplicativos que facilitam nossa vida, principalmente, nesse momento complicado de isolamento e pandemia da COVID 19, no entanto, o Brasil não deve virar as costas para quem nos facilita a vida, visto que sem os entregadores, os aplicativos de entrega, não tem condições de atender a ninguém. 

​A reforma trabalhista do governo de Michel Temer derrubou direitos do cidadão brasileiro e relegou ao mercado um poder ainda maior sobre os contratos, jornadas e remunerações, sob o manto da falada “democrática negociação” entre trabalhadores e empresas, que em suma, se resume à vontade do mercado ao qual os cidadãos que necessitam de trabalho terminam por se submeter. No entanto, algum tipo de contrato é firmado entre as partes. E, embora, o enfraquecimento financeiro dos sindicatos tenha sido incentivado pelo governo, o esclarecimento da necessidade de unidade entre os trabalhadores, torna possível a luta. 

​No que concerne aos aplicativos que funcionam no mundo todo com diferentes regulamentações ou como no Brasil, quase sem nenhuma regulamentação, variando de cidade para cidade, a situação é ainda pior. Os motoristas são atraídos pela falácia de empreendedorismo individual, quando na verdade passam a se dedicar a um trabalho que os escraviza do ponto de vista da jornada, que teoricamente podem definir os horários e a quantidade de horas, mas que precisam intensificar para ter uma rendamínima que lhes permita sobreviver dignamente. 

​Por outro lado, a maioria dos aplicativos não paga impostos federais, estaduais ou municipais, visto que o Brasil não possui uma legislação tributária que atinja os denominados apps de diversas naturezas.  Algo a se pensar com certa urgência.

​O movimento Breque dos Apps me trouxe à memória o filme inglês Você não estava aqui que aborda o dramade uma família cujo pai trabalha como entregador para uma empresa. Em uma das falas do filme o personagem Ricky Turner quando começa a trabalhar para a empresa que faz o link entre os clientes e os motoristas por meio da tecnologia, diz exatamente: Prefiro ser meu próprio chefe!Enquanto que o gerente da empresa diz: Você não dirige para nós- você é nosso parceiro. Deixando visível que não há contrato entre o trabalhador e a empresa, isto implica na impossibilidade de negociar direitos, já que “tudo” é “escolha” do trabalhador.

O filme deixa bem claro a precarização do trabalho ocorrida no Reino Unido desde a crise de 2008 e enfatiza que no novo regime de trabalho não existem contratos ou salário fixo, nem horário a cumprir. Tudo é flexível e depende da capacidade de cada um em se “doar” ao trabalho, que por não remunerar bem o suficiente, acaba escravizando os trabalhadores. 

No filme, o personagem tem que arcar com o aluguel do veículo que lhe permite trabalhar, assim como, com os danos que podem ocorrer aos equipamentos que a empresa aluga ao motorista. E ainda, que é responsabilidade do entregador realizar o trabalho, muitas vezes sem direito apausas para comer ou ir ao banheiro.

A narrativa do filme se concentra em um núcleo familiar que passa a sofrer diversos problemas pela ausência do pai que está sempre trabalhando. Recomendo que assistam não somente pela qualidade da película, mas para que possamos compreender melhor o momento em que vivemos.

A precarização do trabalho encarnada na uberizaçãoda vida, tem se tornado cada vez mais comum em todos os países do ocidente em face das crises econômicas e das facilidades que os aplicativos oferecem para os usuários, como também, para os trabalhadores que não necessitam de qualificações específicas, por exemplo.

Segundo dados do IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística divulgados em dezembro de 2019, o Brasil possui cerca de 1.125.000 motoristas de aplicativos, o que significa aproximadamente 1 motorista para cada 200 brasileiros. A pesquisa mostra ainda que a maioria mantém uma jornada de diária entre 9 e 12 horas e que 52 % trabalha 7 dias por semana. 

Durante a pandemia o trabalho tem se tornado intenso e a grande maioria não tem recebido o material de proteção necessário para o trabalho nesse momento.

Esses brasileiros se somam a milhões de outros que não possuem direitos trabalhistas e estão à margem da sociedade, embora muitos motoristas de aplicativo ainda vivenciem a ilusão de que são seus próprios chefes, portanto, empreendedores individuais de um sistema que ainda não veem como injusto. 

 

 

 

 

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