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Sexta-feira, 01 de novembro de 2024
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VC no Acesse

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acessepiaui@hotmail.com

08/03/2021 - 09h54

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acessepiaui@hotmail.com

08/03/2021 - 09h54

O PRESENTE

 

Já não se lembrava de quantas vezes lera aqueles versos: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos/Eu era feliz e ninguém estava morto”. Era capaz de fechar os olhos e dizer o poema inteiro e, às vezes, o fazia como se orasse a um deus implacável, o tempo.
 
Nos últimos anos, repetia os versos: “Hoje já não faço anos/ Duro” como se fosse um mantra. Viver tornara-se pouco menos que um estorvo: a mulher morta com seu sorriso sempiterno na moldura de prata escurecida. Os amigos mortos. As amantes mortas ou tresmalhadas... Na casa imensa, só ele, a velha resmungona, os frascos de remédio, os livros empoeirados...
 
Às vezes, o filho remanescente, sempre apressado, aparecia com uma réplica do presente do ano anterior: uma antologia do Quintana, um CD do Dick Farney... nunca se esquecendo de observar: “Uma raridade, pai”. E, sempre apressado, partia.
 
Vez que outra, uma revoada de estudantes adentrava o escritório. Barulhentos, desatentos, apressados, faziam as perguntas de sempre, anotavam alguma coisa e partiam como pássaros vadios...  "Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira".

Naquela manhã, não apareceu ninguém. Levantou-se cedo, fez a barba, nunca se esquecendo de repetir uns versos que escrevera na mocidade: ... o estranho que ao espelho me sorri/ brincando de ser eu/antes de perder-me entre ruas e vícios.
 
Pediu um café forte (danem-se os médicos que proíbem tudo!), abriu a antologia do Pessoa e voltou ao poema amado. Parou no verso: “É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio...” Ao meio-dia, toca a campainha. A velha resmungona, arrastando as pernas que deveriam conduzi-la, foi atender. 
 
Sem se anunciar (o perfume de jasmim a denunciava), sem pedir licença, a moça alegre como uma borboleta vadia adentrou o escritório que, de pronto, iluminou-se. Curvou-se, beijou-lhe a carapinha branca e disparou: “Pensou que eu tivesse esquecido o seu aniversário, seu velho sedutor?” O velho limitou-se a mostrar-lhe a caixa de madeira laqueada onde guardava as barrinhas de chocolate meio amargo. Com a gula dos que têm saúde, a moça comia lambendo os dedos...
 
Com seu sorriso de acender manhãs, declarou: “Trouxe-lhe o seu presente favorito, velho frascário!”.  Sem hesitar, num gesto rápido e preciso, levantou a blusa de musselina florida... Dois seios pequenos, rosados, túrgidos, estamparam-se ao alcance de suas “retinas tão fatigadas”...
 
Baixou a blusa, pegou as barras de chocolate, beijou-lhe novamente a carapinha e, como chegou, partiu, borboleteando na esplendente manhã. O velho fechou a antologia, retirou os óculos, fechou os olhos e recitou para ninguém: “O meu dia foi bom/ pode a noite descer” ...

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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 

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