Houve um descuido na introdução de um veículo novo, a motocicleta, no trânsito. Não foi só aqui no Brasil, foi também nos países ricos. Mesmo o carro, quando entrou nos Estados Unidos, matou muita gente. No Brasil a grande tragédia é que não existia uma experiência acumulada no mundo, sobre os impactos fatais da motocicleta, porque a pessoa fica em uma posição muito vulnerável.
Quando se resolveu definir uma política pública de incentivo à motocicleta, os estudos e experiências internacionais foram ignorados. Assim criamos essa tragédia. É difícil encontrar no Brasil, fora a escravidão, um fenômeno social tão destrutível quanto a motocicleta. Conseguimos a proeza trágica, no século 21, de fazer essa barbaridade. A quantidade é aburda. Desde o começo dos anos de 1990 que é quando as motocicletas passaram a ser introduzidas mais facilmente no Brasil, 220 mil pessoas morreram. 1,6 milhão recebem indenização por invalidez permanente. É uma tragédia que não se justifica.
O governo, desde os anos 90, tomou duas decisões: dar incentivo fiscal à indústria e acesso ao crédito para o financiamento da motocicleta. Do ponto de vista econômico, foi um sucesso. O número de motos aumentou de 1 milhão para 20 milhões. Mas o sucesso financeiro não justifica o custo social, que um custo muito alto. O problema ainda é agravado pela deficiência do transporte público.
O principal erro cometido ao introduzir a motocicleta no trânsito foi não preparar as pessoas. Não só os motociclistas como os outros participantes do trânsito. O que acontece muito hoje são atropelamentos de pedestres no cruzamento. O pedestre não está preparado para um veículo pequeno, super ágil, que vai sair correndo assim que o sinal verde abrir. Ninguém preparou o motorista de ônibus e de caminhão, cujos espelhos não conseguem ver a moto na maioria dos casos. Você joga a moto do trânsito cheio de ônibus e caminhões e os motoristas não veem a moto se aproximando. Eles atropelam um motociclista e acham que passaram por uma pedra, nem percebem o que aconteceu.
O único setor público que reagiu a esse problema, por uma questão óbvia, foi o sistema de saúde pública. É o setor que mais se movimentou, alertando para a gravidade e para o custo que para a sociedade. Nos outros âmbitos da política federal, fica-se dizendo quantos empregos gerou, essas coisas. Ninguém informou adqueadamente do risco que o motociclista está correndo. Existe ainda uma parcela da população que tem uma situação de renda precária e que mesmo que conheça o risco, essas pessoas podem aceitá-lo por falta de alternativa. Por exemplo, os motoboys, são jovens de baixa escolarização sem oportunidade de emprego. Poder circular entre os carros, isso para eles foi muito importante na vida deles, empregos foram gerados. Mas eles morreram aos milhares.
Dá para consertar esse problema? Dá. Mas para reduzir o número de acidentes, temos que restrigir o uso da motocicleta em váras situações, não permitir a circulação entre os carros e reduzir os limites de velocidade. Quem vai encarar essa briga? Os políticos não vão. Quem está disposto somos nós, que estudamos o assunto, e a comunidade médica, apenas. E é claro, as famílias das vítimas do trânsito.
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Eduardo Alcântara Vasconcellos é engenheiro, sociólogo e especialista em análise de dados sobre o trânsito nas cidades. É autor do livro recém-lançado: Risco no trânsito, omissão e calamidade.
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