Há livros que prendem o leitor às primeiras linhas. Ocorre uma espécie de arrebatamento, um transportar-se em transe para outro universo, como se o autor tivesse o dom de estacionar um carro, abrir a porta do passageiro, convidá-lo a entrar e partir, sem informar o destino.
Em “O Vestido” (Oficina da Palavra, Teresina, 2017), de Ananda Sampaio, a crônica ligeira e precisa dessa jovem escritora se dissolve na poesia que permeia as palavras, as histórias e os acasos. E assim, despreocupadamente, Ananda nos seduz e conquista e, como uma sereia com seu canto sedutor, nos arrasta e sequestra, nos carrega para longe, lá para os mundos dela, mundos reais mas que, por sua magia no trato das palavras, mais parecem extraídos dos escuros da imaginação.
No prefácio, Cineas Santos dá a pista: “Um dia, Ananda descobriu quer também poderia recriar o mundo à sua imagem e semelhança. Escreveu algumas mensagens cifradas, colocou-as em garrafas vazias e as atirou ao mar. Não poderia imaginar onde chegariam, em que mãos cairiam, que olhos poderiam decifrá-las... Quis o destino que uma dessas mensagens me chegasse às mãos”.
De minha parte, afirmo apenas que, misteriosamente, como se abrisse uma garrafa de sei-lá-o-quê e bebesse uns goles, fui-me deixando levar pela mão (cheia da areia fina das palavras) dessa moça de quem nunca tinha ouvido falar. E, de repente, estou aqui feito menino que ganha brinquedo novo e não quer mais largar.
Os que me acompanham nos escritos que publico na ligeireza dos jornais, na perenidade dos livros e na fugacidade das páginas virtuais sabem de minha predileção por tudo quanto tenha a ver com memória e sua comadre mais próxima – a saudade. Numa das crônicas, logo no início do livrinho de sovinas e breves 140 páginas (muitas delas cobertas de preto puro, como se nos obrigando a fechar os olhos para abri-los ao sol de um dia claro), Ananda nos empurra saudade a dentro, com emprego de imagens de preciosa pontaria. Tão qual que (para usar um piauiês delicado que me apresentaram outro dia) não resisti e, inspirado numa das crônicas, já comecei a alinhavar um lundu que vou dar a algum mágico desses que criam melodias, para fazer as palavras cantarem.
Refiro-me à crônica “Amor a curtas distâncias”, na qual a primeira linha já nos envolve como se um xale de seda fina fosse se enovelando ao pescoço: “O amor se faz em pequenas saudades”. E segue, aconchegando o xale perfumado, pedindo aproximação, cumplicidade: “As mãos que sozinhas são mais sozinhas do que sempre foram. Não se sabe onde coloca-las (nos bolsos?). Elas sentem saudades dos outros dedos para se entrançarem”.
E assim, de pouco em pouco, estamos viajando por outros mundos, com suas saudades, entre sentimentos táteis e, inexplicavelmente, plenos da suavidade fluida das divagações e delírios que só a poesia mais digna desse nome é capaz de provocar: “Os braços... Desses, muito já se falou. Braços são artefatos do amor. Servem para diminuir distâncias, abarcar universos, estreitar as léguas entre os corpos, criar um laço de carne, osso, músculos e veias entre pessoas que desejam estar bem perto. Braços sentem mais saudade, porque são eles que seguram a bandeira do adeus. E dizer adeus é morrer de saudade quando o outro ainda está em nossas vistas”.
Moça danada, essa Ananda – que até no nome lembra a rima da anaconda, a cobra-grande dos tapuias, sedutora de pescadores e canoeiros. Ananda cheia de feitiços. E ela faz tudo isso sem que ninguém apareça para tomar uma providência, por termo a esse jorro de delírio, evitar que ela continue a espalhar pelo ar a sedução dos aromas que cria para embriagar quem se atreva a aspirá-los. Se quiser conhecê-los, crie coragem e abra a primeira página, leia (ou cheire) as primeiras linhas e se prepare para uma viagem ao fundo de um rio de águas claras e frescas. Se não resistir e se afogar nesse rio de palavras que o irão atraindo até o fim do fundo, não diga que não lhe avisei: esse mergulho é arriscado. Mas, como dizem os escafandristas e os viciados em drogas pesadas, medo algum supera as surpresas da visita. Eu fui, maravilhei-me e, como todo viciado, fiquei por lá, aguardando a próxima dose.
-----------------------------------
Texto de Paulo José Cunha - Jornalista e escritor, reproduzido nas redes sociais por Cineas Santos.
Em “O Vestido” (Oficina da Palavra, Teresina, 2017), de Ananda Sampaio, a crônica ligeira e precisa dessa jovem escritora se dissolve na poesia que permeia as palavras, as histórias e os acasos. E assim, despreocupadamente, Ananda nos seduz e conquista e, como uma sereia com seu canto sedutor, nos arrasta e sequestra, nos carrega para longe, lá para os mundos dela, mundos reais mas que, por sua magia no trato das palavras, mais parecem extraídos dos escuros da imaginação.
No prefácio, Cineas Santos dá a pista: “Um dia, Ananda descobriu quer também poderia recriar o mundo à sua imagem e semelhança. Escreveu algumas mensagens cifradas, colocou-as em garrafas vazias e as atirou ao mar. Não poderia imaginar onde chegariam, em que mãos cairiam, que olhos poderiam decifrá-las... Quis o destino que uma dessas mensagens me chegasse às mãos”.
De minha parte, afirmo apenas que, misteriosamente, como se abrisse uma garrafa de sei-lá-o-quê e bebesse uns goles, fui-me deixando levar pela mão (cheia da areia fina das palavras) dessa moça de quem nunca tinha ouvido falar. E, de repente, estou aqui feito menino que ganha brinquedo novo e não quer mais largar.
Os que me acompanham nos escritos que publico na ligeireza dos jornais, na perenidade dos livros e na fugacidade das páginas virtuais sabem de minha predileção por tudo quanto tenha a ver com memória e sua comadre mais próxima – a saudade. Numa das crônicas, logo no início do livrinho de sovinas e breves 140 páginas (muitas delas cobertas de preto puro, como se nos obrigando a fechar os olhos para abri-los ao sol de um dia claro), Ananda nos empurra saudade a dentro, com emprego de imagens de preciosa pontaria. Tão qual que (para usar um piauiês delicado que me apresentaram outro dia) não resisti e, inspirado numa das crônicas, já comecei a alinhavar um lundu que vou dar a algum mágico desses que criam melodias, para fazer as palavras cantarem.
Refiro-me à crônica “Amor a curtas distâncias”, na qual a primeira linha já nos envolve como se um xale de seda fina fosse se enovelando ao pescoço: “O amor se faz em pequenas saudades”. E segue, aconchegando o xale perfumado, pedindo aproximação, cumplicidade: “As mãos que sozinhas são mais sozinhas do que sempre foram. Não se sabe onde coloca-las (nos bolsos?). Elas sentem saudades dos outros dedos para se entrançarem”.
E assim, de pouco em pouco, estamos viajando por outros mundos, com suas saudades, entre sentimentos táteis e, inexplicavelmente, plenos da suavidade fluida das divagações e delírios que só a poesia mais digna desse nome é capaz de provocar: “Os braços... Desses, muito já se falou. Braços são artefatos do amor. Servem para diminuir distâncias, abarcar universos, estreitar as léguas entre os corpos, criar um laço de carne, osso, músculos e veias entre pessoas que desejam estar bem perto. Braços sentem mais saudade, porque são eles que seguram a bandeira do adeus. E dizer adeus é morrer de saudade quando o outro ainda está em nossas vistas”.
Moça danada, essa Ananda – que até no nome lembra a rima da anaconda, a cobra-grande dos tapuias, sedutora de pescadores e canoeiros. Ananda cheia de feitiços. E ela faz tudo isso sem que ninguém apareça para tomar uma providência, por termo a esse jorro de delírio, evitar que ela continue a espalhar pelo ar a sedução dos aromas que cria para embriagar quem se atreva a aspirá-los. Se quiser conhecê-los, crie coragem e abra a primeira página, leia (ou cheire) as primeiras linhas e se prepare para uma viagem ao fundo de um rio de águas claras e frescas. Se não resistir e se afogar nesse rio de palavras que o irão atraindo até o fim do fundo, não diga que não lhe avisei: esse mergulho é arriscado. Mas, como dizem os escafandristas e os viciados em drogas pesadas, medo algum supera as surpresas da visita. Eu fui, maravilhei-me e, como todo viciado, fiquei por lá, aguardando a próxima dose.
-----------------------------------
Texto de Paulo José Cunha - Jornalista e escritor, reproduzido nas redes sociais por Cineas Santos.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião desta página, se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.