A greve ou o locaute dos caminhoneiros Brasil afora – chamem o movimento do jeito que quiserem – se impôs às forças políticas como dramático mistério. Feito a esfinge, dita-lhes: “Decifrem-me ou os devoro”
Uma das grandes omissões dos governos civis que sucederam a ditadura militar foi a estruturação de um serviço de inteligência que merecesse esse nome. Não vale apontar para a tal Abin, que doravante chamaremos de “Abig” – agência brasileira de ignorância.
Afinal, só no Brasil para se ter um serviço secreto cujos agentes são recrutados por concurso público e têm seus nomes arrolados no Diário Oficial da União! E depois ficamos a caçoar dos dotes intelectuais de nossos irmãos portugueses…
A “Abig” não é um serviço secreto – é um serviço ostensivo. Não se destina à coleta conspirativa de dados essenciais à tomada de decisões estratégicas, mas a facilitar o serviço de conspiradores contra os interesses estratégicos da sociedade brasileira. Afinal, não se presta nem para recortar jornais de três semanas atrás! Quem tem “Abig” não precisa de CIA para ser engabelado.
Esqueçam, pois. Os governos civis nunca estiveram preparados para os grandes desafios a sua autoridade, ao estado democrático de direito e à constituição da República.
Ficaram a navegar à deriva num mar de riscos, brincando de roleta… brasileira! Até que demorou para serem engolidos pela crise mais aguda de nossa história política.
Não pode haver surpresas e nem indignação: os eleitos namoraram com o inimigo por anos a fio sem uso de anticoncepcionais e desdenhando até dos preservativos: diziam não gostar de chupar bombom com papel.
Agora, não vale atribuírem a culpa à fertilidade do companheiro ou da companheira. Quem faz amor com o capeta não tem direito de se queixar se passa carregar no bucho o Anticristo do Armagedom. Quem pariu a catástrofe que a embale!
Seria simples assim se não estivesse em jogo nosso destino como Nação altiva e respeitada e como sociedade livre e próspera. Decifrar o mais recente risco à governança é um passo necessário para encontrarmos uma saída do imbroglio que o golpe parlamentar de 2016 criou.
Como não temos serviço de inteligência, talvez devamos nos orientar tateando no escuro para evitarmos esbarrar uns nos outros. Quem não tem cão, caça com gato. Analisemos os dados mais óbvios.
O movimento de caminhoneiros existe porque existe uma demanda, justa ou não. Ela é clara e, de seu atendimento, depende a subsistência do serviço que esses atores prestam à economia industrial e de consumo.
Vejamos. Há dois tipos de transportes rodoviários de carga no Brasil.
Um é oferecido por grandes empresários, sejam eles de oferta terceirizada do serviço ou concomitantemente produtores dos bens transportados. Esses têm gordura para negociar as condições fiscais de seu empreendimento. Faturam e pagam suas obrigações com prazos mais largos, têm capital de giro e geralmente diversificam seus investimentos.
Eles são capitalistas, amigos dos golpistas e não têm problema em conchavar com estes. Querem desobstruir as rodovias porque o show deles tem que continuar. Contentam-se com o gracejo da redução do óleo Diesel em dez por cento, por trinta dias, porque aumenta sua margem de lucro. Business as usual.
Há outro tipo de transporte, porém, que é individual, levado a efeito por pequenos fretistas, por donos de cavalos mecânicos que se oferecem às indústrias, ao comércio para trasladar, a reboque fechado, cargas de um canto a outro do país. Recebem por viagem, assumindo os custos de sua atividade e os riscos inerentes à precariedade de nossa infraestrutura logística.
Têm que cobrir o preço do combustível, do pedagio e do próprio catering ao longo do caminho. Fazem-no com parte da féria ganha. Cumprem itinerários e prazos rígidos que lhes são impostos por contratantes e não dispõem de flexibilidade financeira.
O dinheiro que recebem é no mais das vezes de preço fixo e gasto em boa parte no período de descanso obrigatório e inevitável entre um frete e outro, ou no retorno sem carga.
Devem horrores às financeiras e vivem na estreita greta de sua (in)viabilidade econômica. Longe de suas famílias, passam dias e noites dirigindo seus caminhões, mantendo-se acordados com uso de rebites e altas doses de cafeína, seja na forma de chimarrão ou de cafezinho requentado em garrafa térmica.
São explorados pelos contratantes sem dó nem piedade, pois nenhuma legislação trabalhista os protege. Depois os consumidores urbanos cheirosos ainda os chamam de bugres grosseiros e os xingam nas estradas por atrapalharem a pressa de seus confortáveis SUVs.
Caminhoneiros individuais são uma grande massa de empreendedores proletarizados numa economia de consumo de escala que busca crescente eficiência através da negação dos direitos dos mais vulneráveis da cadeia produtiva. Muitos foram expulsos do mercado de trabalho e acreditaram que sobreviveriam num nicho de razoável, ainda que modesto custo-benefício.
Enganaram-se redondamente. Com o decréscimo da atividade econômica a partir de 2014, muitos ficaram ao relento, sem frete. Não tinham margem para assumir a desaceleração da demanda.
Com a redução do frete e a disponibilidade enorme de caminhões ociosos, empresários contratantes resolveram repassar suas perdas para o setor de cargas individuais, mais vulnerável, e reduziram o valor da féria. Era aceitar ou largar. Viagens antes pagas por 8 mil reais, passaram a oferecer apenas 5 ou 6 mil, na cartelização usual da demanda de transporte rodoviário.
Só que os custos da atividade transportadora não diminuíram. Pelo contrário. O governo, insensível para com as necessidades do setor, liberou o preço do combustível na refinaria e na bomba, bem como autorizou aumentos é mais aumentos do pedágio rodoviário.
A maioria dos fretistas individuais simplesmente se inviabilizou economicamente, mas não tem como sair do negócio pois deve prestações de seus caminhões de segunda mão financiados e, quase todos, devem também o parcelamento de custos de manutenção, como pneus, reparos e revisões. Estão na lona e não têm saída. É desespero mesmo.
Nenhum combatente vai à guerra levar bala por esporte. Nenhum cidadão sobe barricadas a desafiar o monopólio de violência do estado classista por diletantismo ideológico.
O que faz revoluções é a constatação por revoltados de que nada têm a perder. Atravessa-se o Rubicão quando voltar significa enfrentar hordas de bárbaros sanguinolentos.
“Flucht nach vorne” – a fuga para frente é a única saída para quem está encalacrado numa situação “lose-lose” – de perder ou perder.
A esquerda política brasileira, em boa parte, padece dos vícios de um revolucionarismo romântico, esquerdismo como doença infantil do comunismo. Perde-se em conceitos, preconceitos e rótulos. Como pequeno-burgueses que são seus atores, preferem tachar os caminhoneiros paredistas de bolsonaristas. Fim de papo.
Acham bom vê-los enrolados em suas contradições: pedem intervenção militar e estão prestes a levar porrada dos milicos que tanto adulam! Nossos progressistas riem de barriga cheia. Não disfarçam sua “Schadenfreude” – o contentamento pela desgraça alheia. Olham a casca e não veem a substância.
Sim, caminhoneiros estão há tempos atordoados e não conseguem se fazer ouvir. Não são grandes teóricos políticos e não têm tempo para ler Lênin, Trotski ou Gramsci. Os fascistas adoram gente atordoada. É sua especialidade manipular fobias para seu projeto de poder totalitário. O fascismo, nunca é demais repetir, não constitui ideologia, mas apenas uma perversa e boçal prática política de mobilização do ódio coletivo para submeter massas à expropriação de seus direitos e de sua emancipação.
Caminhoneiros individuais são presas fáceis para projetos fascistas e, por isso, festejam os que em breve os reprimirão. Nada temos a comemorar, como esquerda consciente, na repressão de proletários ceenepejotizados! Caminhoneiros são não capitalistas.
São expulsados do mercado de trabalho, enganados pela mais-valia que frauda seu esforço de sobrevivência. É preciso superar rancores do golpe que apoiaram e trazê-los para o lado da luta por uma sociedade mais justa que os abrace, que dê suporte à sua causa.
Talvez compreendendo um pouco da dialética do processo histórico, os que querem libertar nosso país das garras de sua elite entreguista, míope e escravocrata se aproximem do movimento, sempre lembrando que boa parte das agruras dos paredistas está no veloz processo de deterioração da garantia de direitos e de desnacionalização de setores estratégicos de nossa economia, como o de produção de combustíveis minerais, entregues a grupos estrangeiros a preço de banana por um governo lacaio e corrupto.
É a rejeição desse quadro que nos une aos caminhoneiros e nos torna mais próximos a eles do que os fascistas o pretendem ser.
O mistério da esfinge assim se desvenda, de forma relativamente simples, sem ajuda de “Abigs”. Mas, para não sermos surpreendidos, quem sabe pensemos em organizar nossa inteligência, apesar de toda conspiração contra os interesses do Brasil! Tratemos de tirar as consequências dessa constatação e quiçá aproximemos a política dos paredistas…
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Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, no site Diário do Centro do Mundo
Uma das grandes omissões dos governos civis que sucederam a ditadura militar foi a estruturação de um serviço de inteligência que merecesse esse nome. Não vale apontar para a tal Abin, que doravante chamaremos de “Abig” – agência brasileira de ignorância.
Afinal, só no Brasil para se ter um serviço secreto cujos agentes são recrutados por concurso público e têm seus nomes arrolados no Diário Oficial da União! E depois ficamos a caçoar dos dotes intelectuais de nossos irmãos portugueses…
A “Abig” não é um serviço secreto – é um serviço ostensivo. Não se destina à coleta conspirativa de dados essenciais à tomada de decisões estratégicas, mas a facilitar o serviço de conspiradores contra os interesses estratégicos da sociedade brasileira. Afinal, não se presta nem para recortar jornais de três semanas atrás! Quem tem “Abig” não precisa de CIA para ser engabelado.
Esqueçam, pois. Os governos civis nunca estiveram preparados para os grandes desafios a sua autoridade, ao estado democrático de direito e à constituição da República.
Ficaram a navegar à deriva num mar de riscos, brincando de roleta… brasileira! Até que demorou para serem engolidos pela crise mais aguda de nossa história política.
Não pode haver surpresas e nem indignação: os eleitos namoraram com o inimigo por anos a fio sem uso de anticoncepcionais e desdenhando até dos preservativos: diziam não gostar de chupar bombom com papel.
Agora, não vale atribuírem a culpa à fertilidade do companheiro ou da companheira. Quem faz amor com o capeta não tem direito de se queixar se passa carregar no bucho o Anticristo do Armagedom. Quem pariu a catástrofe que a embale!
Seria simples assim se não estivesse em jogo nosso destino como Nação altiva e respeitada e como sociedade livre e próspera. Decifrar o mais recente risco à governança é um passo necessário para encontrarmos uma saída do imbroglio que o golpe parlamentar de 2016 criou.
Como não temos serviço de inteligência, talvez devamos nos orientar tateando no escuro para evitarmos esbarrar uns nos outros. Quem não tem cão, caça com gato. Analisemos os dados mais óbvios.
O movimento de caminhoneiros existe porque existe uma demanda, justa ou não. Ela é clara e, de seu atendimento, depende a subsistência do serviço que esses atores prestam à economia industrial e de consumo.
Vejamos. Há dois tipos de transportes rodoviários de carga no Brasil.
Um é oferecido por grandes empresários, sejam eles de oferta terceirizada do serviço ou concomitantemente produtores dos bens transportados. Esses têm gordura para negociar as condições fiscais de seu empreendimento. Faturam e pagam suas obrigações com prazos mais largos, têm capital de giro e geralmente diversificam seus investimentos.
Eles são capitalistas, amigos dos golpistas e não têm problema em conchavar com estes. Querem desobstruir as rodovias porque o show deles tem que continuar. Contentam-se com o gracejo da redução do óleo Diesel em dez por cento, por trinta dias, porque aumenta sua margem de lucro. Business as usual.
Há outro tipo de transporte, porém, que é individual, levado a efeito por pequenos fretistas, por donos de cavalos mecânicos que se oferecem às indústrias, ao comércio para trasladar, a reboque fechado, cargas de um canto a outro do país. Recebem por viagem, assumindo os custos de sua atividade e os riscos inerentes à precariedade de nossa infraestrutura logística.
Têm que cobrir o preço do combustível, do pedagio e do próprio catering ao longo do caminho. Fazem-no com parte da féria ganha. Cumprem itinerários e prazos rígidos que lhes são impostos por contratantes e não dispõem de flexibilidade financeira.
O dinheiro que recebem é no mais das vezes de preço fixo e gasto em boa parte no período de descanso obrigatório e inevitável entre um frete e outro, ou no retorno sem carga.
Devem horrores às financeiras e vivem na estreita greta de sua (in)viabilidade econômica. Longe de suas famílias, passam dias e noites dirigindo seus caminhões, mantendo-se acordados com uso de rebites e altas doses de cafeína, seja na forma de chimarrão ou de cafezinho requentado em garrafa térmica.
São explorados pelos contratantes sem dó nem piedade, pois nenhuma legislação trabalhista os protege. Depois os consumidores urbanos cheirosos ainda os chamam de bugres grosseiros e os xingam nas estradas por atrapalharem a pressa de seus confortáveis SUVs.
Caminhoneiros individuais são uma grande massa de empreendedores proletarizados numa economia de consumo de escala que busca crescente eficiência através da negação dos direitos dos mais vulneráveis da cadeia produtiva. Muitos foram expulsos do mercado de trabalho e acreditaram que sobreviveriam num nicho de razoável, ainda que modesto custo-benefício.
Enganaram-se redondamente. Com o decréscimo da atividade econômica a partir de 2014, muitos ficaram ao relento, sem frete. Não tinham margem para assumir a desaceleração da demanda.
Com a redução do frete e a disponibilidade enorme de caminhões ociosos, empresários contratantes resolveram repassar suas perdas para o setor de cargas individuais, mais vulnerável, e reduziram o valor da féria. Era aceitar ou largar. Viagens antes pagas por 8 mil reais, passaram a oferecer apenas 5 ou 6 mil, na cartelização usual da demanda de transporte rodoviário.
Só que os custos da atividade transportadora não diminuíram. Pelo contrário. O governo, insensível para com as necessidades do setor, liberou o preço do combustível na refinaria e na bomba, bem como autorizou aumentos é mais aumentos do pedágio rodoviário.
A maioria dos fretistas individuais simplesmente se inviabilizou economicamente, mas não tem como sair do negócio pois deve prestações de seus caminhões de segunda mão financiados e, quase todos, devem também o parcelamento de custos de manutenção, como pneus, reparos e revisões. Estão na lona e não têm saída. É desespero mesmo.
Nenhum combatente vai à guerra levar bala por esporte. Nenhum cidadão sobe barricadas a desafiar o monopólio de violência do estado classista por diletantismo ideológico.
O que faz revoluções é a constatação por revoltados de que nada têm a perder. Atravessa-se o Rubicão quando voltar significa enfrentar hordas de bárbaros sanguinolentos.
“Flucht nach vorne” – a fuga para frente é a única saída para quem está encalacrado numa situação “lose-lose” – de perder ou perder.
A esquerda política brasileira, em boa parte, padece dos vícios de um revolucionarismo romântico, esquerdismo como doença infantil do comunismo. Perde-se em conceitos, preconceitos e rótulos. Como pequeno-burgueses que são seus atores, preferem tachar os caminhoneiros paredistas de bolsonaristas. Fim de papo.
Acham bom vê-los enrolados em suas contradições: pedem intervenção militar e estão prestes a levar porrada dos milicos que tanto adulam! Nossos progressistas riem de barriga cheia. Não disfarçam sua “Schadenfreude” – o contentamento pela desgraça alheia. Olham a casca e não veem a substância.
Sim, caminhoneiros estão há tempos atordoados e não conseguem se fazer ouvir. Não são grandes teóricos políticos e não têm tempo para ler Lênin, Trotski ou Gramsci. Os fascistas adoram gente atordoada. É sua especialidade manipular fobias para seu projeto de poder totalitário. O fascismo, nunca é demais repetir, não constitui ideologia, mas apenas uma perversa e boçal prática política de mobilização do ódio coletivo para submeter massas à expropriação de seus direitos e de sua emancipação.
Caminhoneiros individuais são presas fáceis para projetos fascistas e, por isso, festejam os que em breve os reprimirão. Nada temos a comemorar, como esquerda consciente, na repressão de proletários ceenepejotizados! Caminhoneiros são não capitalistas.
São expulsados do mercado de trabalho, enganados pela mais-valia que frauda seu esforço de sobrevivência. É preciso superar rancores do golpe que apoiaram e trazê-los para o lado da luta por uma sociedade mais justa que os abrace, que dê suporte à sua causa.
Talvez compreendendo um pouco da dialética do processo histórico, os que querem libertar nosso país das garras de sua elite entreguista, míope e escravocrata se aproximem do movimento, sempre lembrando que boa parte das agruras dos paredistas está no veloz processo de deterioração da garantia de direitos e de desnacionalização de setores estratégicos de nossa economia, como o de produção de combustíveis minerais, entregues a grupos estrangeiros a preço de banana por um governo lacaio e corrupto.
É a rejeição desse quadro que nos une aos caminhoneiros e nos torna mais próximos a eles do que os fascistas o pretendem ser.
O mistério da esfinge assim se desvenda, de forma relativamente simples, sem ajuda de “Abigs”. Mas, para não sermos surpreendidos, quem sabe pensemos em organizar nossa inteligência, apesar de toda conspiração contra os interesses do Brasil! Tratemos de tirar as consequências dessa constatação e quiçá aproximemos a política dos paredistas…
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Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, no site Diário do Centro do Mundo
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