Trecho da biografia do casal de cangaceiros escrita pelo jornalista Wagner Gutierrez Barreira, publicado pelo Nexo Jornal.
"No meio de uma tarde de novembro de 2017, estudantes do ensino médio do alto sertão pernambucano, das ribeiras do rio Pajeú, ouviam atentos a palestra sobre as implicações do cangaço na cultura. Estavam no auditório anexo ao Museu do Cangaço, em Serra Talhada, depois de um dia cheio – chegaram cedo, de ônibus, vindos de cidades vizinhas. Visitaram a casa de Lampião, as ruínas da sede da fazenda do inimigo número 1 de Virgulino Ferreira, a formação rochosa da primeira tocaia contra o futuro cangaceiro. Almoçaram enquanto assistiam a uma apresentação de xaxado e depois visitaram as três salas do museu antes de começar a palestra. Na hora inevitável das perguntas que sucede as apresentações, uma adolescente levantou a mão, fugiu do tema e quis saber sobre “a história do sal”. O episódio já apareceu em filmes, livros e ainda vive no imaginário dos nordestinos, repetido por gerações. Conta que Lampião e seus sequazes chegaram à noite a uma fazenda. Pediram algo para comer à dona da casa, que se dispôs a cozinhar e serviu o que tinha na cozinha. A certa altura do jantar, um dos bandoleiros reclamou: a comida estava insossa. O Rei do Cangaço, discretamente, enviou um rapaz à venda mais próxima, recebeu a encomenda e, em silêncio, levantou-se, abriu os dois pacotes de sal e despejou o conteúdo no prato do insatisfeito. “Coma”, ordenou.
Com sua moral edificante, a “história do sal” parece mais uma fábula. Mas talvez não tenha o protagonismo de Lampião. Alguns historiadores a atribuem a outros cangaceiros, anteriores a ele. Variações mudam o ingrediente, para farinha ou pimenta. Pelo tempo necessário para encontrar a venda mais próxima de uma fazenda no sertão nordestino e a deglutição de um prato feito diante dos olhos de alguém esfomeado, a ação parece mesmo muito inverossímil. Mas o mito do sal no prato do cangaceiro reclamão se repete, continua a ser contado longe dos cânones da historiografia. Ele é, hoje, uma história de Lampião.
Em 1931, mesma época em que o Rei do Cangaço reafirmava sua liderança fora da lei nos sertões da Bahia, o jornalista ucraniano Ilya Ehrenburg estava sentado em um café, em Madrid, diante de outro homem extraordinário, o anarquista Buenaventura Durruti. “Nenhum autor teria ousado escrever a história da sua vida; lembraria demais um romance de aventuras”, anotou em seu caderno. Durruti foi condenado à morte em três países, conheceu e fugiu de incontáveis presídios, liderou a resistência catalã às tropas de Francisco Franco. Morreu em 1936, a caminho da frente de batalha, provavelmente pelas mãos de comunistas, em mais um dos tantos mistérios da Guerra Civil Espanhola.
Virgulino Ferreira da Silva se foi em 1938, pouco antes de o general Francisco Franco vencer os republicanos e instaurar uma ditadura que durou quarenta anos na Espanha. Lampião estava em um vale isolado, no estado de Sergipe, próximo do rio São Francisco. Como a de Durruti, sua história lembra um romance de aventuras. Pródiga, distinta de todas as outras, tão individual e acessível, tão necessária que ele leu a primeira biografia a seu respeito – e chegou a apontar incorreções. Depois vieram novos livros. Hoje, calcula-se que sejam mais de 1.500, sem incluir teses acadêmicas, estudos teóricos em publicações especializadas, artigos em jornais e revistas, cordéis. Os primeiros livros, na maioria, são de personagens que conviveram com Lampião, alguns o combateram. Antônio Amaury, dentista em São Paulo, autor de mais de uma dezena de obras sobre o cangaço, depois de seguidas aventuras pelas brenhas do sertão nos anos 1960 e 1970, garante ter ouvido 7 mil testemunhas dos eventos. Há sólidos estudos acadêmicos sobre Lampião (alguns estão nas referências bibliográficas) e o interesse pelo cangaço, tão específico, restrito a um tempo, o fim do século 19 e início do 20, e a um espaço, a caatinga nordestina, atrai pesquisadores norte-americanos e europeus até hoje.
O filósofo alemão Hans Magnus Enzensberger criou um “romance” sobre Buenaventura Durruti, colando depoimentos, notícias de jornal, documentos de época e outras fontes. Em seu “Primeiro Comentário” – os comentários são recursos que usará ao longo da obra para religar e dar sentido aos textos-colagem do livro –, ele relata como é enfrentar o desafio de escrever sobre um personagem que cresceu além da própria existência física. “A História é uma invenção para a qual a realidade fornece os elementos. Não é, porém, uma invenção arbitrária”, afirma. “Só o verdadeiro sujeito da história deixa sua sombra. E esta sombra é projetada como ficção coletiva.”
A história de Lampião é ficção coletiva, contada há quase um século por narradores e protagonistas dos eventos que, por vezes, moldam a História às suas necessidades, convicções e ambições, por autores que tomam partido ou simplesmente escancaram a ficção. Há de tudo nas narrativas, um arco que vai do herói sertanejo que combateu desigualdades, passa pelo homem de negócios que transformou o cangaço em meio de vida e chega ao assassino sanguinário, ao bandido sem escrúpulos. São formas justas e possíveis de tratar de um sujeito complexo feito Lampião, que foi tudo isso – e muito mais.
A propósito, os alunos de ensino médio em visita a Serra Talhada não conheceram a casa em que nasceu o cangaceiro, mas a de sua avó, restaurada, a 100 metros de distância, de onde mal se veem as ruínas das fundações. Nem mesmo as rochas do primeiro combate são testemunhas minerais – os disparos ocorreram em outro local, de difícil acesso a excursões. A casa dos pais de Maria Bonita, no norte da Bahia, foi restaurada e transformada em museu em 2006. Hoje, descendentes da família da cangaceira que vivem em uma habitação vizinha abrem as portas quando aparecem turistas e pesquisadores – o grosso dos frequentadores são estudantes da região de Paulo Afonso.
Lampião deu poucas entrevistas ao longo da vida. Maria Bonita só se tornou conhecida depois de desfazer seu casamento e se unir ao bandido mais famoso de seu tempo. As notícias de jornal (de quase todas as capitais nordestinas) ecoam um personagem visto de longe, cujos valores, princípios e modo de vida nada têm a ver com os do jornalista que escreveu o artigo – são dois mundos distintos, quase antagônicos. Até documentos oficiais são suspeitos por minimizar danos e vender uma visão edulcorada da polícia. Nesse cenário confuso, Lampião aparece desenhando seu destino. Com sua voz pausada, grave e baixa, deixa vazar o que interessa. Posa para fotos, torna-se astro de um filme jamais exibido ao grande público. Interage.Ao se olhar para o que se produziu sobre ele, a vista embaralha. Dados equivocados, erros geográficos, informações contraditórias, cronologias impossíveis aparecem nos livros sobre o cangaceiro, sem contar as múltiplas versões para o mesmo episódio. Há, por exemplo, uma tórrida descrição da noite de núpcias de Maria Bonita e Lampião feita por um padre. Quem terá sido sua fonte? Uma invenção do mesmo autor, a de que o nome Virgulino deriva de vírgula – “[...] e, por causa disso, segundo o padre que o batizou, ele um dia poderia parar o sertão”, como diz a guia que leva turistas ao local da morte do cangaceiro em Sergipe –, continua sendo repetida, ainda que não faça sentido e pareça impossível conhecer o que disse o padre no dia do batizado de um filho de agricultor do sertão pernambucano no fim do século 19".
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Wagner Gutierrez Barreira nasceu em São Paulo em 1962. Jornalista, trabalhou em Veja, O Estado de S. Paulo, TV Cultura e revista Aventuras na História. Também foi diretor editorial de mídias digitais na Editora Abril e professor de técnicas de reportagem e teoria do jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
"No meio de uma tarde de novembro de 2017, estudantes do ensino médio do alto sertão pernambucano, das ribeiras do rio Pajeú, ouviam atentos a palestra sobre as implicações do cangaço na cultura. Estavam no auditório anexo ao Museu do Cangaço, em Serra Talhada, depois de um dia cheio – chegaram cedo, de ônibus, vindos de cidades vizinhas. Visitaram a casa de Lampião, as ruínas da sede da fazenda do inimigo número 1 de Virgulino Ferreira, a formação rochosa da primeira tocaia contra o futuro cangaceiro. Almoçaram enquanto assistiam a uma apresentação de xaxado e depois visitaram as três salas do museu antes de começar a palestra. Na hora inevitável das perguntas que sucede as apresentações, uma adolescente levantou a mão, fugiu do tema e quis saber sobre “a história do sal”. O episódio já apareceu em filmes, livros e ainda vive no imaginário dos nordestinos, repetido por gerações. Conta que Lampião e seus sequazes chegaram à noite a uma fazenda. Pediram algo para comer à dona da casa, que se dispôs a cozinhar e serviu o que tinha na cozinha. A certa altura do jantar, um dos bandoleiros reclamou: a comida estava insossa. O Rei do Cangaço, discretamente, enviou um rapaz à venda mais próxima, recebeu a encomenda e, em silêncio, levantou-se, abriu os dois pacotes de sal e despejou o conteúdo no prato do insatisfeito. “Coma”, ordenou.
Com sua moral edificante, a “história do sal” parece mais uma fábula. Mas talvez não tenha o protagonismo de Lampião. Alguns historiadores a atribuem a outros cangaceiros, anteriores a ele. Variações mudam o ingrediente, para farinha ou pimenta. Pelo tempo necessário para encontrar a venda mais próxima de uma fazenda no sertão nordestino e a deglutição de um prato feito diante dos olhos de alguém esfomeado, a ação parece mesmo muito inverossímil. Mas o mito do sal no prato do cangaceiro reclamão se repete, continua a ser contado longe dos cânones da historiografia. Ele é, hoje, uma história de Lampião.
Em 1931, mesma época em que o Rei do Cangaço reafirmava sua liderança fora da lei nos sertões da Bahia, o jornalista ucraniano Ilya Ehrenburg estava sentado em um café, em Madrid, diante de outro homem extraordinário, o anarquista Buenaventura Durruti. “Nenhum autor teria ousado escrever a história da sua vida; lembraria demais um romance de aventuras”, anotou em seu caderno. Durruti foi condenado à morte em três países, conheceu e fugiu de incontáveis presídios, liderou a resistência catalã às tropas de Francisco Franco. Morreu em 1936, a caminho da frente de batalha, provavelmente pelas mãos de comunistas, em mais um dos tantos mistérios da Guerra Civil Espanhola.
Virgulino Ferreira da Silva se foi em 1938, pouco antes de o general Francisco Franco vencer os republicanos e instaurar uma ditadura que durou quarenta anos na Espanha. Lampião estava em um vale isolado, no estado de Sergipe, próximo do rio São Francisco. Como a de Durruti, sua história lembra um romance de aventuras. Pródiga, distinta de todas as outras, tão individual e acessível, tão necessária que ele leu a primeira biografia a seu respeito – e chegou a apontar incorreções. Depois vieram novos livros. Hoje, calcula-se que sejam mais de 1.500, sem incluir teses acadêmicas, estudos teóricos em publicações especializadas, artigos em jornais e revistas, cordéis. Os primeiros livros, na maioria, são de personagens que conviveram com Lampião, alguns o combateram. Antônio Amaury, dentista em São Paulo, autor de mais de uma dezena de obras sobre o cangaço, depois de seguidas aventuras pelas brenhas do sertão nos anos 1960 e 1970, garante ter ouvido 7 mil testemunhas dos eventos. Há sólidos estudos acadêmicos sobre Lampião (alguns estão nas referências bibliográficas) e o interesse pelo cangaço, tão específico, restrito a um tempo, o fim do século 19 e início do 20, e a um espaço, a caatinga nordestina, atrai pesquisadores norte-americanos e europeus até hoje.
O filósofo alemão Hans Magnus Enzensberger criou um “romance” sobre Buenaventura Durruti, colando depoimentos, notícias de jornal, documentos de época e outras fontes. Em seu “Primeiro Comentário” – os comentários são recursos que usará ao longo da obra para religar e dar sentido aos textos-colagem do livro –, ele relata como é enfrentar o desafio de escrever sobre um personagem que cresceu além da própria existência física. “A História é uma invenção para a qual a realidade fornece os elementos. Não é, porém, uma invenção arbitrária”, afirma. “Só o verdadeiro sujeito da história deixa sua sombra. E esta sombra é projetada como ficção coletiva.”
A história de Lampião é ficção coletiva, contada há quase um século por narradores e protagonistas dos eventos que, por vezes, moldam a História às suas necessidades, convicções e ambições, por autores que tomam partido ou simplesmente escancaram a ficção. Há de tudo nas narrativas, um arco que vai do herói sertanejo que combateu desigualdades, passa pelo homem de negócios que transformou o cangaço em meio de vida e chega ao assassino sanguinário, ao bandido sem escrúpulos. São formas justas e possíveis de tratar de um sujeito complexo feito Lampião, que foi tudo isso – e muito mais.
A propósito, os alunos de ensino médio em visita a Serra Talhada não conheceram a casa em que nasceu o cangaceiro, mas a de sua avó, restaurada, a 100 metros de distância, de onde mal se veem as ruínas das fundações. Nem mesmo as rochas do primeiro combate são testemunhas minerais – os disparos ocorreram em outro local, de difícil acesso a excursões. A casa dos pais de Maria Bonita, no norte da Bahia, foi restaurada e transformada em museu em 2006. Hoje, descendentes da família da cangaceira que vivem em uma habitação vizinha abrem as portas quando aparecem turistas e pesquisadores – o grosso dos frequentadores são estudantes da região de Paulo Afonso.
Lampião deu poucas entrevistas ao longo da vida. Maria Bonita só se tornou conhecida depois de desfazer seu casamento e se unir ao bandido mais famoso de seu tempo. As notícias de jornal (de quase todas as capitais nordestinas) ecoam um personagem visto de longe, cujos valores, princípios e modo de vida nada têm a ver com os do jornalista que escreveu o artigo – são dois mundos distintos, quase antagônicos. Até documentos oficiais são suspeitos por minimizar danos e vender uma visão edulcorada da polícia. Nesse cenário confuso, Lampião aparece desenhando seu destino. Com sua voz pausada, grave e baixa, deixa vazar o que interessa. Posa para fotos, torna-se astro de um filme jamais exibido ao grande público. Interage.Ao se olhar para o que se produziu sobre ele, a vista embaralha. Dados equivocados, erros geográficos, informações contraditórias, cronologias impossíveis aparecem nos livros sobre o cangaceiro, sem contar as múltiplas versões para o mesmo episódio. Há, por exemplo, uma tórrida descrição da noite de núpcias de Maria Bonita e Lampião feita por um padre. Quem terá sido sua fonte? Uma invenção do mesmo autor, a de que o nome Virgulino deriva de vírgula – “[...] e, por causa disso, segundo o padre que o batizou, ele um dia poderia parar o sertão”, como diz a guia que leva turistas ao local da morte do cangaceiro em Sergipe –, continua sendo repetida, ainda que não faça sentido e pareça impossível conhecer o que disse o padre no dia do batizado de um filho de agricultor do sertão pernambucano no fim do século 19".
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Wagner Gutierrez Barreira nasceu em São Paulo em 1962. Jornalista, trabalhou em Veja, O Estado de S. Paulo, TV Cultura e revista Aventuras na História. Também foi diretor editorial de mídias digitais na Editora Abril e professor de técnicas de reportagem e teoria do jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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