Por razões que eu não saberia explicar, às vezes me ocorre acordar com uma música no juízo como se fosse a única canção do universo. Sou capaz de passar o dia inteira cantarolando-a para ninguém. Dona Purcina, que tinha resposta para todas as perguntas, diria: “Pura bestagem”. Ponto final.
Ontem, acordei com a canção “Foguete” (de Roque Ferreira e J. Velloso) no juízo. A cantiga é bem bonita, notadamente na voz da Bethânia que valoriza e dignifica qualquer música. Por volta do meio-dia, engasguei-me com os versos: “É como disse João Cabral de Mello Neto/ um galo sozinho não tece uma manhã/ senti na pele a mão do teu afeto/quando escutei a canto da acauã”. Peraí! Canto da acauã? Seguramente os autores da cantiga não são nordestinos.
Para nós, o canto da acauã (Herpetotheres cachinnans) está sempre associado a coisas ruins: mortes, tragédias, desgraças... Luiz Gonzaga e Zé Dantas, nordestinos com certificado de garantia, escreveram: “Acauã, acauã vive cantando/ Durante o tempo do verão/ No silêncio das tardes agourando/ Chamando a seca pro sertão”.
Fui pesquisar e descobri que a “fama” de ave agourenta não se restringe ao Nordeste. Vai muito além. Os sábios dirão: “Simples superstição, bobagem”, esquecidos de que as superstições povoam o nosso imaginário e, com incomoda frequência, norteiam nossos atos.
Pelo sim e pelo não, parei de cantarolar a música que, para mim, perdeu muito do seu encanto. Se o problema era uma rima em ã, bastaria recorrer a ribaçã, nome popular das avoantes no sertão. Ficaria até mais poético: as ribaçãs arrulham. Pensando bem, pura bestagem minha.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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