A babel das redes sociais em nosso entorno reverbera inúmeras vozes que dia a dia se colocam em lados opostos sobre toda e qualquer tipo de situação. A verdade que sempre foi pautada em pontos de vista agora perde osreferentes e se torna moeda de uso pessoal intransferível. Recentemente, um debate acalorado, como tudo o que toma os teresinenses de paixão nesses anos sombrios de início do século XXI, veio à tona tendo como motivação primeira a ocupação da nave central do antigo sanatório Meduna pelo coletivo cultural Salve Rainha, durante os finais de semana de fevereiro para os ensaios de carnaval. Diga-se de passagem, os eventos se denominam ensaios, mas trata-se de uma proposição de unificação de exposições artísticas, com apresentações musicais e feiras culturais.
Vale destacar que o Salve Rainha, composto por jovens ousados e visionários, prioriza alguns eixos como a visibilidade do patrimônio histórico abandonado, a inclusão, acessibilidade e a integração entre os artistas das várias manifestações e gerações, assim como, a democratização cultural.
Pois bem, na novela sobre o ocupa Meduna encontramos de um lado, familiares e amigos de antigos pacientes da instituição, que tanto por não conhecerem o trabalho do Salve Rainha, como por uma convicção de que o lugar não deve ser de “festa”, entendem que seria uma falta de respeito para com os pacientes que sofreram naquele manicômio. Ao lado desses, inúmeras pessoas que possuem o mesmo entendimento. Em oposição, uma legião de outros tantos jovens e artistas que acompanham, incentivam e admiram o trabalho do coletivo, mas também familiares de pacientes que possuem outro entendimento e relacionamento com a memória. No meio, o próprio Salve Rainha a tentar desconstruir os mitos criados pelo imaginário coletivo teresinensesobre o movimento, buscando desenvolver práticas culturais inclusivase promover debates sobre diversos temas concernentes à cidade, à cultura e ao próprio lugar: o Meduna.
Observando as opiniões postas e contrárias, percebemos que há um hiato na forma como nos relacionamos com a memória. De um lado, um apego a memória da dor e do sofrimento como algo inviolável, de outro, em muitos momentos, o não reconhecimento do espaço como memória. Nesse sentido, foi que o próprio coletivo se apropriou do debate público de forma positiva e passou a promover encontros para a exposição de assuntos concernentes e ideias.
As rodas de conversa promovidas durante dos ensaios de carnaval do Salve Rainhatem abordado temas como suicídio, doenças mentais, luta antimanicomial e patrimônio histórico, dentre outros; refletindo o começo do que seria uma futura maturidade do grupo que além de muito jovem é formado integralmente, como dito, por pessoas jovens, mas que já tem nas costas o peso da responsabilidade de uma breve trajetória pautada na imensa capacidade de articulação e formação de público. O Salve Rainha puxa para si o debate de temas que comumente circunscritos às instâncias da academia ou aos salões do poder público, não chega a sociedade. Bravo!
No último domingo participamos rapidamente da roda de conversa sobre patrimônio histórico com foco no patrimônio arquitetônico e urbano. E lá, percebemos que não temos ciência sequer do que queremos ou consideramos como importante para a sociedade e passível preservação, esteja no âmbito arquitetônico, artístico, linguístico, etc.
E por que não sabemos? Não sabemos porque não nos conhecemos. Patrimônio arquitetônico, pode ou não, ser componente da memória urbana de uma sociedade, portanto, ter ou não, importância para a memória coletiva de um povo. Aquilo que para mim é um roteiro extremamente caro, como um passeio pelas ruas do quadrante central do mapa urbanístico da capital datado de 1852, pode não ter e não tem a menor importância para jovens que de sua periferia nunca conseguiram vivenciar a experiência do conhecimento histórico. Portanto, constar nos livros didáticos pode ser menos importante do que contar histórias ao vivo e viver a cidade.
Assim, acredito que para descobrirmos o que devemos ou não preservar, como devemos ou não preservar, quando devemos começar a preservar, é preciso que mudemos nossa relação com a nossa memória.
Diferentemente de muitos povos, nós, pouco valorizamos a nossa cultura, pouco nos orgulhamos de quem somos e isso se reflete em nossa relação com a memória, pois se não temos do que nos orgulhar, não desejamos pertencer e não queremos nem lembrar, quanto mais preservar.
A palavra identidade cultural vem sendo trabalhada há poucos anos entre nós, mas já consegue despertar, sobretudo, na juventude um sentimento de pertencimento arraigado e uma fome por nos conhecer.
Do ponto de vista da paisagem urbana, não apenas Teresina, mas todo o Piauí, carece de maior conhecimento de seu passado, que não é passado, mas é presente porque ainda é e porque aqui estamos. Por todos os lugares o que assistimos é a derrubada de casarões e de edifícios para a construção de novos com estilos contemporâneos, fazendo desaparecer a materialidade de lugares que podem ativar memórias.
Hoje nos mobilizamos e lutamos por uma casa, por uma árvore, por uma rua, por um edifício, sempre com muita dificuldade para tentar preservar um pedacinho da memória urbana da cidade, mas o que dizer da cidade que não mais existe, porque sua paisagem foi toda transformada e onde apenas encontramos alguns elementos residuais que tentamos resguardar.
Que tal pensarmos daqui há cem anos, quando nosso presente virar passado e quando não houver quem preserve nossa memória espalhada pelas praças, pelas ruas, pelos teatros, pelos edifícios, pelos meios de comunicação; que registram nosso modo de vida, nossas sociabilidades atuais.
Que sentimentos lhes suscitam tal imagem? Para mim de desolação, pois não desejo que este momento seja totalmente jogado no Rio de Letes (no esquecimento), muito menos que o mundo como conhecemos seja totalmente engolido por um futuro predador. Acredito na capacidade negociadora das gerações, acredito na potencialidade da convivência entre passado, presente e futuro, até porque são vivenciados de formas distintas por cada sociedade.
Existem exemplos de sociedades que convivem e negociam de formas com a memória. Essas sociedades não apenas respeitam a própria história e memória como partes constituintes de sua identidade, como transformam a relação com os campos históricos e mnemônico em um grande capital cultural e turístico, atraindo turistas e pesquisadores de todas as partes do mundo.
Fica a dica!
Ana Regina Rêgo
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