Há poucos dias publiquei neste meu espaço opinativo um primeiro texto sobre a naturalização e os equívocos do conceito de democracia, na ocasião convoquei Alain Touraine que situa a democracia como o espaço das liberdades, mas, sobretudo, do respeito às liberdades. Na semana seguinte trabalhei sobre a banalidade do mal em nossos dias e, obviamente, chamei Hannah Arendt; contudo a ideia era, principalmente, fazer pensar sobre o lugar e a essência do mal que se manifesta em pequenas coisas e gestos, sobretudo, confrontando a proliferação do mal em nossa incipiente democracia.
A propósito não sou eu quem denomina o Brasil de democracia imperfeita,para a EconomistIntelligence Unit apenas 11% da população mundial, residente em 25 países vive em democracias completas. Infelizmente, nós brasileiros estamos fora e agora, cada vez mais fora. Em 2011 ocupávamos a 44ª posição no ranking das democracias, qualificados pela instituição acima nomeada, de democracia imperfeita. Vale destacar que o ranking baseia-se em 60 indicadores que são agrupados em cinco categorias, a saber: liberdades civis; funcionamento do governo; participação política; cultura políticas e, por fim, processo eleitoral e pluralismo. Foram qualificadas como democracias imperfeitas 54 países, existem ainda os Regimes híbridos localizados em 37 nações e Regimes autoritários em 51 países.
Dito isto, hoje caminho ao lado de Norberto Bobbio paratrazer algumas considerações e ponderações sobre o conceito de democracia objetivando contribuir para desnaturalização do termo. Trago Bobbio porque como ele, entendo que a essência dos regimes democráticos diferem potencialmente da essência dos regimes autoritários, embora ambos guardem grandes paradoxos. Em seu texto Democracia e ditadura Bobbio confronta o pensamento de Marx e Engels para quem todos os Estados, enquanto tais, são ditaduras, visto que são produto da luta de classes. Para os autores mencionados por último, e citados por Bobbio, o Estado “[...] é o instrumento mediante o qual a classe que levou a vantagem domina e oprime a outra classe, onde o poder que o caracteriza não pode ser nem adquirido nem exercido por uma determinada classe ( ora será a burguesia, ora será o proletariado) a não ser com a violência. O termo “ditadura” serve para indicar nesses contextos o modo necessariamente violento da aquisição e do exercício do poder estatal, ou se, se quiser, a indissolubilidade entre Estado e violência”. Vale ressaltar que o autor, nesse texto, dialoga diretamente com as ideias de Lenin objetivando desconstruir alguns paradigmas que direcionaram os governos na Rússia no século XX.
Na verdade Bobbio assinala que o que potencialmente marca um regime totalitário não é exatamente o modo violento de aquisição do poder, o regime nazista por exemplo, contraria essa opção. De modo geral, o que o autor propõe é pensar para além das assertivas deterministas para os regimes democráticos e ditatoriais. Para Bobbio “[...] se aceitarmos chamar de “ditadura da burguesia” qualquer regime no qual a classe burguesa é a classe hegemônica, devemos admitir que essa ditadura pode ser exercida de duas formas muito diferentes: como uma forma de regimento de tipo liberal-democrático e como uma de tipo antiliberal e antidemocrático”. Todavia, é bom que se destaque que o modelo liberal-democrático não pode ser confundido do ponto de vista de sua forma jurídica com o modelo anti-liberal. Logo o que afirma o autor é que todos os Estados não são ditatoriais, visto que sob o ponto de vista dos regimes jurídicos,possuem características e divergências essenciais para a própria sobrevivência.
Todavia, Bobbio no texto denominado A liberdade dos modernos comparada com a da posteridade, literalmente inspirado em Benjamin Constant em a liberdade dos antigos comparada ao dos modernos; destaca que o grande e novo problema dos regimes democráticos liberais, concerne ao fato de que cada vez mais se presencia regimes democráticos que não respeitam os princípios clássicos do liberalismo, em muitas situações praticando excessos e em raros casos praticando a tirania da maioria. Isso tem acarretado não somente em problemas de ordem teórica, mas, sobretudo, empírica. Para o autor “[...] hoje, ao contrário, o problema da democracia não liberal ou totalitária é um problema real, tão real como era, na época da Restauração, o problema de um liberalismo não democrático”. Esses regimes democráticos não liberais e com diversas características de totalitários são os que se situam na faixa dos países governados por regimes híbridos.
Considerando portanto que a democracia foi um regime que nasceu sob a ótica da doutrina liberal; para Bobbio toda proposição democrática fora do escopo liberal não se consolida enquanto democracia. Em suas palavras “[...] quando falo de democracia liberal falo daquilo que para mim é a única forma possível de democracia efetiva enquanto democracia sem outro acréscimo, sobretudo se entende que “democracia não liberal” indica em minha opinião uma forma de democracia aparente.
Um dos pontos mais importantes situados nesse segundo texto de Bobbio refere-se ao conceito de liberdade em cada doutrina e regime aqui já mencionados. Para a doutrina liberal o termo liberdade indica um estado de não impedimento, um estado de liceidade. Nos regimes democráticos o termo adquire outro sentido que é o de autonomia em oposição a constrangimento.
A questão das liberdades aqui posta de forma sucinta nos leva a outra questão. O tamanho do Estado. Os liberais desejam um Estado mínimo e um mercado que se autogoverne. Os não liberais e aderentes a outras ideologias, situadas por vezes à esquerda (ou até à extrema direita), desejam um Estado forte que possa proteger o cidadão do mercado predatório e do poder hegemônico de uma classe burguesa. Nesse ponto muitas interrogações perpassam, já que a liberdade dos liberais defendida no escopo democrático não garante potencialmente as liberdades nem os direitos individuais. Entretanto, os regimes não liberais, por exemplo, de extrema esquerda, que objetivam garantir direitos e bens de forma igualitária, restringem, geralmente, todas as liberdades e as vinculam aum único pensamento. Paradoxos!
Como bem menciona Bobbio na atualidade a necessidade de controle do poder instalado desde o principio do pensamento democrático nos poderes constituídos agora se torna imperativo por outro motivo que seria a permanente luta de classes. Em todo o caso, a divisão dos poderes que pretende o equilíbrio e independência entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário,compreende um conjunto de aparelhos ou instrumentos jurídicos que constituem o Estado de direito e que devem ter como base princípios básicos da convivência humana em sociedade, tais como: a legalidade e a imparcialidade em busca da liberdade. Não mais a liberdade natural, mas as liberdades civis.
Portanto, todo abuso de liberdade que se manifesta no ambiente democrático eque pretende subjugar o outro, torna-se nocivo a este ambiente e como tal deve ser entendido e combatido. Vale, portanto, pensar em nossa atualidade, principalmente, no Brasil em que manifestações da sociedade civil pregam o ódio e a restrição das liberdades individuais para as minorias, assim como, as ações do governo que com conchaves vem quebrando e jogando na lixeira a independência dos poderes, agindo como um rolo compressor para diminuir direitos da classe trabalhadora e garantir regalias para o empresariado predatório que invade nosso país.
Ana Regina Rêgo
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