Há quase 80 anos os frankfurtianos já alertavam e criticavam a banalização, a padronização e a vulgarização das produções artísticas que passaram a ser apropriadas pelo mercado em um contexto de sociedade de massa. A queixa dos teóricos de Frankfurt se deu em uma espacialidade e temporalidade distinta da nossa, mas muitas de suas ponderações nos são úteis nos dias atuais, sobretudo, porque a arte, expressão cognoscível dos sentimentos e da alma do artista que manifesta socialmente as inquietações do espírito em relação dialética com as relações sociais e políticas, tem a função primordial de fazer pensar, de despertar no apreciador aquilo que nele dormia, ou, para o que não havia sido alertado.
As mentes lacradas para o exercício do pensar, incoerentemente ou não, pensarão: “ lá vem doutrinação marxista”, ao que respondo: E não é que é mesmo!
A ideia em todas as minhas falas neste espaço opinativo é desnaturalizar o que nos foi imposto como normal, usual e comum, logo nada mais apropriado do que trazer os sociólogos Walter Benjamin e Max Horkheimer, até como reverência ao movimento que iniciaram em prol de uma discussão sobre as manipulações sociais que aconteciam e acontecem, a partir de uma apropriação e transmutação de valores culturais.
Pois bem, o mercado nos impõe o gosto nos cercando com produtos culturais que nos fazem desejar ser iguais aos que detém os bens culturais que gostaríamos de possuir e nos afastar das práticas culturais dos que, para nós, se colocam como alteridades. O mercado forma nosso gosto e nos dirige diariamente para o consumo, deixando transparecer, no entanto, que é nosso livre arbítrio quem guia o caminho; o que na verdade é uma doce ilusão. O sociólogo francês Pierre Bourdieu a quem volta e meia recorro nesta coluna, nos alertou há muito, para os processos culturais de distinção social.
O mercado musical, dentre outros, hoje se encontra completamente dominado por uma lógica que privilegia profissionais cada vez menos comprometidos com as pautas sociais e políticas, e, o pior, cujas letras atacam e contrapõem diretamente o que está na pauta do debate e das políticas públicas, em relação à mulher, por exemplo. Esse mercado termina então, por reafirmar a naturalização da dominação masculina, mas não só isso, pois provoca, principalmente, um silenciar das lutas sociais.
As harmonias simplórias muitas vezes, são repetitivas à exaustão de modo que o pensar não é requisitado, ao contrário é substituído por uma (aí sim, doutrinação) behaviorista. Os seres humanos transformados em autômatos tem horror a qualquer pensamento ideológico, muitos situam a ideologia no patamar dos grandes males, como se o humano pudesse passar ao largo dos processos ideológicos, confirmando assim, a situação de marionetes de um mercado, cujo grande aliado é o sistema midiático, que com todo o seu capital simbólico faz as manobras que julga necessárias para manter o poder sobre o pensar da sociedade.
Como a sociedade poderia então se preparar pra contrapor às hegemonias culturais e as dominações simbólicas postas e naturalizadas?
O mais normal seria através das atividades do Estado, onde se encontram como nossos representantes, pessoas que ali colocamos para legislar e fazer acontecer processos necessários para tornar uma sociedade cada vez mais igualitária do ponto de vista do acesso à educação, à saúde, à cultura e, portanto, a um desenvolvimento humano holístico, em que direitos são preservados e deveres são cumpridos.
Portanto, no campo cultural é função do Estado fomentar a criatividade, permitindo a acessibilidade em todas as fases do processo de produção cultural, assim como, preservando o direito à visibilidade do que é produzido em termos de bens e serviços culturais entre os membros de uma mesma comunidade, como também, para outros espaços, pelo menos em nível nacional.
A ideia é reconhecer as identidades locais e regionais, potencializando a visibilidade da diversidade cultural, incluindo o que existe e o que é produzido no Brasil para além do eixo sudestino.
Entretanto, quando, por exemplo, eventos de grandes proporções realizados pelo poder público e criadospara reafirmar valores culturais e/ou formar público para uma música fora do eixo mercadológico, mas, principalmente, para uma música que desperte o pensar; mudam completamente o rumo e ao invés de formar público e reafirmar valores, passam a reproduzir as lógicas do mercado, acontece uma dissociação entre o papel do Estado para com seu povo, reproduzindo os erros de um Estado que apenas privilegia o mercado.
É bem verdade que atende ao que o povo pede, visto que a maioria das pessoas, por não ter acesso a uma música mais elaborada, não foi ainda formada para esse gosto. Entretanto, é válido pensar, que o povo já é bombardeado diariamente por músicas de letras e harmonias simplórias que ficam gravadas, e que lhes são impostas, pois são, praticamente, onipresentes.
O São João, nossa festa mais tradicional, foi dominado por uma lógica de mercado complicada que se apropria e recria nossos valores, tornando-os descartáveis na prateleira dos aplicativos musicais. O jazz, a música instrumental, a música erudita, a música popular brasileira foram engolidos pelas explosões de duplas femininas e masculinas que somente trabalham temáticas sentimentais naturalizadas, que falam de traição e vinganças, etc.
Não temos nada que nos lembre uma letra como a de Triste Partida cantada por Luiz Gonzaga que conta a saga e o sofrimento do nordestino. E, mesmo em tempos políticos e sociais conservadores e sombrios, não temos nada que nos lembreBrasil mostra a tua cara de Cazuza; não temos nada que nos lembre as denúncias de um momento de restrições de liberdades como em Cálice de Chico Buarque; mas também não temos nada que exalte a mulher como em Rosa de Pixinguinha, hoje a mulher é a safada de Malandramente, propagando o senso comum de que as ações masculinas normalmente aceitas, se apropriadas pelo feminino nos transformam em transgressoras, portanto, em safadas.
Então fica a dica: política cultural de Estado é para promover a acessibilidade e a democracia participativa no campo cultural e não para reafirmar as lógicas do mercado. É bem verdade que nossos representantes no poder não desejam que venhamos a exercer o nosso direito de pensar, então cabe a nós lutarmos por isso.
Ana Regina Rêgo
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