Se os homens não fossem indiferentes uns aos outros, Auschwitz não teria sido possível, os homens não o teriam tolerado. Os homens, sem exceção, sentem-se hoje pouco amados porque todos amam demasiado pouco. A incapacidade de identificação foi, sem dúvida, a condição psicológica mais importante para que pudesse suceder algo como Auschwitz entre homens de certa forma educados e inofensivos.
Theodor Adorno. Educação e Emancipação.
Teresina estremeceu novamente esta semana com o assassinato da jovem de 21 anos, Camila Abreu. Nas redes sociais, mulheres que lutam e mulheres que aceitam o machismo, assim como, homens que combatem o machismo e homens que praticam o machismo, parecem estar todos do mesmo lado. Todos indignados com o crime bárbaro. Os posts vão do luto e da tristeza à indignação e a violência verbal. Dificilmente em um momento de comoção social como este, alguém que é conivente com as posturas da dominação masculina no dia-a-dia, ou que pratica o machismo, se manifestará em favor do assassino, pois a espiral do silêncio vigora. Entretanto, muitos ainda imputam à vítima a culpa pelo crime que sofreu.
Mas efetivamente o que significaessa comoção?
Camila Abreuvirou um número nas estatísticas publicizadas por inúmeras pesquisas no Brasil sobre a violência contra a mulher e que volta e meia, divulgo neste espaço opinativo. Esses números dão conta de que 13 mulheres são mortas por dia no país ( 2015), 1 mulher sofre estupro a cada 12 minutos no país ( 2016), 500 mulheres são vítimas de agressão física no Brasil a cada hora( 2017) e por aí vai.
O feminicídio (sim, caros senhores, senhoras e todxs é assim que devemos denominar os assassinatos de mulheres) é o último estágio da agressão. Antes, na maioria dos casos, houveram sinais de que a violência se aprofundaria, mas normalmente, ninguém se envolve, ninguém se manifesta, poucos ajudam. Poucos desejam se envolver.
A culpa termina sendo imputada a vítima uma vez que insistiu em permanecer com o agressor. Será que a vítima teve a oportunidade de se livrar do agressor? Será que a vítima teve apoio para processar o agressor? Será que a vítima abriu processo contra o agressor? E se abriu como foi recebida nos órgãos policiais e nas instâncias jurídicas e como seu processo andou? (Essas perguntas embora retóricas aqui, podem ser aplicadas a qualquer vítima ).
Então pergunto que raios de comoção é essa que nos impede de ajudar, principalmente, os mais próximos? Quando o agressor está em nossa família o que fazemos? Quando o agressor está em nosso ambiente de trabalho, o que fazemos para ajudar quem está sofrendo ou sofreu a agressão?
Já ouvi da boca de uma promotora de justiça que em determinado caso de violência doméstica não poderia sequer orientar, pois tratava-se de um caso de família e não iria se meter. Já ouvi de colegas do agressor da minha filha que não se tratava de violência, nem de crime e, por último, ouvi ontem de colegas da minha instituição sobre o processo que abri contra o professor que me agrediu com uma bengala na mão, que há um erro de interpretação pois trata-se de um caso de discussão entre dois professores e por isso não instalou a comissão de apuração. É verdade, fui defender uma aluna agredida verbalmente e o agressor que é homem,reagiu me ameaçando batendo com muita violência sua bengala nas mesas e balcões do recinto em que nos encontrávamos.
Então retorno a Hannah Arendt e ao julgamento de Eichmann e, portanto, ao relato sobre a banalidade do mal.
O mal não é reconhecido pela face de um Lúcifer que se nos apresenta matando a todos e soltando fogo pelas narinas ou com um tridente de fogo nas mãos. A maldade humana é inerente ao cotidiano e as práticas diárias. O pedófilo pode ser também e na maioria das vezes, o é, um pai de família com boa reputação social. O assassino é o namorado dedicado que leva flores para a mulher que ama. O assassino caso de Eichmannera somente um homem que cumpria ordens sem questionar.
Mas a banalidade do mal está em nós quando vemos uma agressão contra outra pessoa e como não é conosco, não intervimos, não denunciamos, não fazemos nada. Até que o dia em que a pequena violência que presenciamos se torna uma grande violência e aí, já é tarde, já é número, já é corpo morto.
O que nos leva a não agir? Convicção de que a briga entre os namorados ou “entre marido e mulher não se mete a colher”? Convicção de uma discussão no ambiente de trabalho em que um homem ameaça uma mulher com uma bengala é uma discussão entre iguais?
Talvez o medo seja o principal sentimento que nos paralisa, do mesmo modo que está entre os sentimentos que nos impele a agir em casos de desconhecimento do outro ou da história, ou, da própria realidade. Como o medo do corpo( que no Brasil sensualizamos ao extremo) ou, o medo da arte; ou ainda o medo do que dizem sobre o pensamento de Judith Butler que fez com que vários brasileiros, completamente envolvidos pelas mensagens ( que agem como estímulos para que se obtenha determinadas respostas, a saber: a famosa ‘bala mágica”), assinassem uma petição que pretende impedir a palestra da filosofa norte-americana na próxima semana.
Mas será só o medo ou é a banalidade do mal que nos cega todos os dias ?
Por que não ajudamos Camila Abreu em vida? Por que não denunciamos os assédios e os abusos que tomamos conhecimento diariamente? Por que não agimos enquanto há vida a ser defendida?
De que adianta tanta indignação nas redes sociais e poucas transformações no modo como educamos culturalmente nossos filhos e filhas para igualdade de gênero e para o respeito para com as mulheres e para com todxs.
De que adianta uma cobertura midiática predatória que explora fotos e vídeos que envolvem a vítima e o assassino se já não há mais nada a fazer pela Camila Abreu. A justiça agora se encarregará de mais um criminoso, que mesmo sendo condenado, não demorará muito a ser libertado, sobretudo, se sua alma for salva por alguma religião milagrosa. Enquanto que Camila não teve o direito a defesa e perdeu assim o direito à vida.
Hoje não tenho dicas para dá, pois só indignação resta em todos os casos de violência que nós mulheres vivenciamos, presenciamos ou tomamos conhecimento. Espero que o sangue das mulheres que banha este país diariamente, pare de jorrar, pois continuamos a viver um verdadeiro massacre.
Ana Regina Rêgo
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