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Domingo, 17 de novembro de 2024
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Ana Regina Rêgo

Ana Regina Rêgo

anareginarego@gmail.com

09/04/2020 - 11h59

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Ana Regina Rêgo

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09/04/2020 - 11h59

UM ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

O meu texto é inspirado no livro do escritor, José Saramago, ganhador do Camões de 1995 e do Prêmio Nobel de Literatura em 1998.

José Saramago, escritor português

 José Saramago, escritor português

“Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”  
(Saramago, Ensaio sobre a cegueira, CIA das Letras, 1995)


O meu texto de hoje é inspirado no livro do grande escritor português, José Saramago, ganhador do Camões de 1995 e do Prêmio Nobel de Literatura em 1998, Ensaio sobre a cegueira, no qual ele  realiza uma imersão no universo humano e nos lugares mais longínquos e desconhecidos da alma, onde perpetuam os desejos, o ódio e os valores que carregam em si, a carga de um mal, pautada na individualidade construída em meio à uma sociedade moderna, marcada pela supremacia do EU, do egoísmo, em detrimento dos valores comunitários e sociais. 
O autor explora uma essência do humano que é, em si, desumana, nosso pior lado. Tratando de uma epidemia de cegueira, a narrativa revela o que se esconde nas sombras de cada um, quando ninguém pode ver, quando os instintos e os valores pessoais sobrepujam a vontade coletiva, a ética se esvai e o humano se degrada completamente, se tornando um ser irracional, muitas vezes. O pensar em si, em detrimento do outro é o guia da cegueira coletiva. 

Na narrativa de Saramago, a mulher do médico é a única a manter a visão e, portanto, a única a poder ver o que há de mais belo e o que há de pior naquela situação de epidemia, que se localiza em uma cidade não nomeada. Simboliza, a razão, simboliza a possibilidade de renascimento do humano.

Ao afirmar que “Cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”, Saramago nos chama para a razão, nos esfrega na cara que a esperança se esvai quando a humanidade perde a potência do olhar. Lembrando Hannah Arendt em A vida do espírito,  somente existimos porque possuímos aparatos do ver, não somente do ponto de vista físico, que detalha nossa aparência e a aparência do que vemos e/ou do que narramos, mas, principalmente, do ponto de vista do pensamento, das construções culturais e sociais coletivas. O olhar para além dos olhos, embasado nas possibilidades de desenvolvimento de um pensar, de um pensar crítico.

Saramago é cruel sim ao nos revelar claramente o que somos enquanto hipócritas e egoístas, que adoram fazer caridade, mas que não desejam a igualdade de oportunidades e direitos. Sobretudo, nos expõe em nossa incapacidade de compartilhar. O escritor em sua narrativa densa e violenta em muitos sentidos, apresenta cenas que nós em nossa hipocrisia, não suportamos ver, como as cenas de estupro coletivo, mesmo sabendo que elas povoam nossas cidades e massacram nossas mulheres diariamente. A exploração da miséria humana é uma constante na narrativa de Ensaio sobre a cegueira, mostrando que não passamos de irracionais. Desde a briga pela comida à delimitação dos espaços de poder dentro do manicômio para onde são enviados todos os contaminados pela cegueira coletiva.

Mas porque trago a narrativa de Saramago para o Brasil de hoje? Espero que a maioria que chegou até aqui já tenha lido o livro e, portanto, a explicação não precisará ser longa, até porque não temos espaço. 
Trago porque em nosso Brasil e mundo atuais, a cegueira coletiva que tem tomado conta das mentes de nossos cidadãos em uma construção intencional da ignorância que iniciou com os trolls de Putin há quase 10 anos, com a naturalização das informações falsas, popularizadas como fake News, e que tem se transformado em uma segunda pandemia, como bem falei, em artigos anteriores, visto que mais de 60% dos brasileiros não sabem discernir se uma informação é verdadeira ou não e não sabem sequer recorrer a lugares de checagem, já que ao jornalismo tradicional, não recorrem por ordem das narrativas manipuladas que recebem diariamente em seus grupos familiares de WhatsApp e que descredibilizam o jornalismo.
 
O mais incrível é que em momento de pandemia do corona vírus/COVID 19 as fábricas de informações falsas que tiveram seus momentos de maior propulsão mercadológica durante o impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff e durante as eleições de 2018, voltaram com a carga toda, para apoiar o Presidente Jair Bolsonaro que continua em disputa com o Ministro da Saúde, sobre ações necessárias de isolamento social e uso de medicamentos.
 
Gostaria de chamar todas as mulheres de médico, em alusão ao personagem de Saramago que carrega a metáfora da luz, do olhar, do ver e da razão para juntos sermos luz na imensidão da ignorância intencional. Lembrando que nossos cidadãos que continuam cegos e revelam a pior face da miséria humana, ao não se preocupar com os mortos, como se um número pequeno não fosse importante, como os grandes empresários e o povo que os segue, ou seja, não importa se até agora morreram mais de 700, número que consideram insuficiente para parar a economia do país; estão cegos, por um processo intencional de manipulação para mudança comportamental baseada em valores intrínsecos à nossa cultura. Elas e eles podem voltar a ver. Precisamos despertar o pensar em quem ainda não consegue enxergar.

O convite que trago de Saramago é para que recuperemos a lucidez perdida para o mercado das informações falsas, mas também perdida para valores conservadores que não permitem ver o outro, não respeitam a diversidade, a mulher, os homossexuais, os negros e negras, se preocupam em combater o feminismo como luta por direitos iguais, enquanto fingem não ver os números crescentes da violência contra a mulher, sobretudo, os gritantes números de estupros e feminicídios. Hipócritas de plantão, o convite de Saramago é para que recuperemos afetividade perdida, o amor universal e a benevolência, não localizada em quem prega e/ou anda de arma na mão tendo como alvo qualquer pessoa que pense diferente.
 
Recuperar a lucidez significa também refazer o pacto de eticidade coletiva rompido pela miséria dos valores de quem para ter seus objetivos atingidos, acredita que a vida do outro não importa. Precisamos recuperar a ética, reaver os pactos em torno da verdade, precisamos acreditar na importância da ciência, da história e da boa informação que nos traz o jornalismo consciente. A COVID 19 enquanto pandemia revela uma crise civilizatória que esperamos nos leve a superar o egoísmo e a pensar mais no coletivo, no respeito à natureza e em nós enquanto humanos, sem distinção de qualquer tipo.
 
Vidas importam, quaisquer que sejam elas. Vidas importam. Ontem perdemos um amigo e para nós já foi mais do que suficiente. Fique em casa. 

Para concluir mais um trecho de Ensaio sobre a cegueira. Qualquer semelhança é mera coincidência?

“Atenção! Atenção! Atenção! O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidêmico de cegueira, provisoriamente designado por mal-branco, e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio...”.

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