Esse foi o título do curso de curta duração que a Profa. Dra. Sylvie Debs da Universidade de Estrasburgo-França ministrou no Mestrado em Comunicação da Universidade Federal do Piauí, nos últimos dias. Antes, porém, realizou o lançamento de seu livro Cinema e Cordel- jogo de espelhos na Livraria Monsenhor Melo na UFPI.
O convite para que Sylvie Debs viesse ao Piauí nasceu a partir do conhecimento de suas pesquisas na área da cultura popular brasileira, especialmente, a nordestina, com destaque para o cordel e o repente e as interfaces de ambos com o cinema nacional; o que a faz uma das grandes especialistas na temática, portanto, uma pessoa com grande potencial de contribuição não apenas para fomentar futuras investigações na área, como também, como grande difusora da nossa cultura.
Antes do livro Cinema e Cordel- jogo de espelhos, Sylvie Debs publicou Patativa do Assaré (2000), Cinema e Literatura no Brasil- os mitos do sertão: emergência de uma identidade nacional (2002) e Brésil, l’atelier des cinéastes (2004), o que aponta a trajetória da pesquisadora e seu mergulho no universo cultural brasileiro.
Cinema e Cordel- jogo de espelhos procura revelar os caminhos e as encruzilhadas entre os dois espaços estéticos definidos, aparentemente dissociados, mas que se cruzaram ao longo das últimas décadas a partir de demandas ocasionais e naturais. O trabalho da escritora se apresenta intrigante e instigante, pois ao tempo em que investiga as relações existentes, revela o nascimento, a construção, as formas de preservação e o aparente ostracismo da cultura popular nordestina que se faz por meio das manifestações do cordel, do repente e de outras que as acompanham como a rabeca, a xilogravura, as esculturas em barro, etc.
O cineasta Geraldo Sarno no prefácio do livro que ora comentamos, nos situa exatamente no universo da pesquisa de Sylvie Debs ao afirmar que, ao seu ver “ a poesia oral, do improviso das cantorias ou fixada em versos escritos nos folhetos, ocupa o centro dessas formações culturais, permeando-as com temas, formas expressivas, maneiras de ver e sentir. O Bumba, Mestre Paizinho, o mamulengo, a cerâmica, Mestre Vitalino, a música, Mestre Noza e Walderêdo, a gravura, creio que estão todos penetrados por formas e expressões que, em última instância, têm sua matriz na poesia oral. Porque a fixada no folheto de cordel é também oral, na medida em que é escrita para ser lida, em voz alta, por um conjunto de ouvintes”.
É também Geraldo Sarno quem afirma que a aproximação entre o cinema e o cordel acontece, sobretudo, pela linguagem e não apenas pelas temáticas exploradas pelo cordel que muitas vezes nasciam no universo cinematográfico. Nesse contexto, o livro de Sylvie Debs apresenta tanto um aprofundamento de cunho teórico e conceitual dedicando-se ao encontro entre as duas linguagens e a visível intertextualidade existente, como nos brinda com vínculos de memória adormecidos ou silenciados.
Nesse jogo intertextual entre as duas estéticas que em determinados momentos se tornam híbridas, Sylvie Debs revela a influência que a chegada do cinema ao interior do nordeste teve na produção dos cordéis, revelando por tabela, o impacto que a sétima arte causou no ambiente social. Por outro lado, os cordéis terminaram se tornando modelos de representação utilizados pelo Cinema Novo para contestar a arte posta e o cenário político.
O livro de Sylvie Debs fala de seus caminhos pela pesquisa sobre a cultura brasileira, revela seu itinerário pelos acervos, sua peregrinação na procura de personagens para entrevistar, cuja lista inclui poetas populares, cordelistas, mestres ceramistas, críticos, atores e diretores de cinema. O certo é que Cinema e Cordel compõem-se de sete ensaios, dentre os quais podemos destacar o segundo: Cordel, cinema & Glauber: era uma vez o Nordeste; assim como o quinto: Patativa do Assaré visto por Rosemberg Cariry ou a construção do mito.
Além dos ensaios o livro traz três conjuntos de entrevistas. O primeiro dedica-se aos cineastas e apresenta uma relação de 15 entrevistados, como Cesar e Marie-Clémence Paes, Geraldo Sarno, Nelson Pereira dos Santos, Sérgio Ricardo, dentre outros. No segundo conjunto, encontramos entrevistas com atores e críticos como Hernani Heffner, João Carlos Teixeira Gomes e José Dumont. E por último, o conjunto das entrevistas com cordelistas em que podemos nos deliciar com as falas de Eneas Tavares, João Bosco Bezerra Bonfim, José Borges e Marcelo Soares.
Por fim, vale ressaltar que Sylvie Debs demonstra intensa sensibilidade ao visualizar os intercâmbios perceptíveis entre os campos estéticos que se influenciaram e se influenciam mutualmente. Para além disso, a pesquisadora se torna mais brasileira do que muitos de nós brasileiros, ao demonstrar ao longo do curso e da obra, a paixão pela nossa cultura, muitas vezes por nós relegada e intencionalmente esquecida, como uma mancha que não queremos ver revelada, porque nos lembra quem de fato somos, um quem aliás, de quem desejamos nos afastar, para podermos nos aproximar das identidades contemporâneas vendidas mercadologicamente pelo conjunto das mídias.
No diálogo com a autora em diversos momentos, pudemos perceber, no entanto, que a prática do cordel e das manifestações que o acompanham, segue firme, agora os artistas populares são também pesquisadores, muitos, inclusive, doutores. Pessoas que procuram não apenas preservar uma tradição, mas aprofundar os caminhos trilhados e abrir novas frentes para as manifestações.
Concluo com outra fala de Geraldo Sarno ao afirmar que o livro de Sylvie Debs segue trajetória singular nos estudos sobre o cinema nacional, pois se dedica a investigar formas tradicionais de expressão do povo brasileiro. Sylvie traz para o protagonismo artistas nordestinos que se dedicam a uma arte ancestral em constante transformação e os coloca ao lado de cineastas renomados como Glauber Rocha.
Assim, é certo que o livro Cinema e Cordel de Sylvie Debs deve ser leitura obrigatória aos brasileiros, principalmente, aos nordestinos que desejam conhecer parte de sua cultura. Por sinal, devemos ler, curtir e compartilhar e não apenas em contexto virtual, mas em contextos de co-presença em que as discussões e os debates podem ser enriquecedores.
Ana Regina Rêgo
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