Em mais de uma oportunidade, afirmei que seu Liberato era um homem exato, um homem sem transbordamentos. Ao longo da vida, nunca o vi correr ou gritar; eufórico ou colérico. Um sertanejo de tristezas brandas e alegrias rasas. Parecia movido por uma noção exata de ritmo, o seu ritmo. Nos eitos dos roçados, às vezes, os trabalhadores competiam entre si para ver quem terminava mais rápido determinada tarefa. Alheio a tais disputas, seu Liberato apenas fazia o seu trabalho. Não fazia versos, não tocava viola, não contava vantagens. Quando lhe sobrava algum tempo, contava causos, alguns muito engraçados. Em matéria de música, conhecida apenas duas que, raramente, cantava com voz suave a afinada: “Cabelo de meu bem tem areia,/tem areia, tem areia, vou tirar;/cabelo de meu bem tem areia, /tem areia, só tiro se ela mandar”. A outra: “Foi uma jura/ Que fiz de nunca mais amar/ Ai, ai, ai, meu Deus/ Para que jurei?/ Todo mundo sabe/ Quebrei minha jura, quebrei”.
Seu Liberato prezava muito o silêncio, razão por que não suportava rádio. Quando perdeu a visão, por volta dos 70 anos de idade, passava os dias sentado numa redinha de fibra de caroá, conversando e recontando causos. Acontece que a casa de dona Purcina era o local de encontro dos estudantes do Ginásio Dom Inocêncio. A velha ganhava a vida vendendo doce à molecada. Quando a algazarra se fazia insuportável, o velho limitava-se a afirmar baixinho: “Isto aqui é a estação da luz”.
Vai que, um dia, apareceu em nossa casa uma jovem que não desgrudava do rádio nem para dormir. Certa feita, agastado com o barulho daquela “engenhoca rouca”, seu Liberato lhe fez uma recomendação: “Minha filha, deixe esse rádio descansar um bocadinho. De tanto falar, um dia, pode lhe faltar assunto”. A moça sorriu e continuou na dela, com o radinho a tiracolo. Numa noite qualquer, o velho acordou ao som de uma música de letra maliciosa: “Ô tabaco bom, bom de se cheirar!/Ô tabaco bom, vamos gente, vem comprar”, na voz de Messias Holanda. Ficou abismado com aquilo. Na manhã seguinte, não se conteve: “Minha filha, seu rádio ontem à noite, estava cantando prosa”. Dias depois, a jovem acordou apavorada no meio da noite, com o rádio “falando uma língua esquisita”. Era o noticiário da BBC de Londres. Meu pai foi taxativo: “Menina, aquilo era a estação do inferno. Convém tomar cuidado”. Assustada, a mocinha nunca mais dormiu com o rádio ligado.
Lembrei-me dessa história boba, ao ouvir um dos sucessos da “música” fank no automóvel de uma jovem bem-nascida. A letra é de fazer corar uma estátua de granito. Pensei comigo: feliz de seu Liberato que não viveu o bastante para testemunhar que, hoje, a estação do inferno não entra acidentalmente no rádio. Agora, os programas de rádio, com honrosas exceções, são transmitidos, ao vivo, diretamente do inferno. O tempora! O mores!
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Cineas Santos, professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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