Há 60 anos a democracia no Brasil foi interrompida por um golpe civil-militar. Muitos que apoiaram o movimento armado imaginaram que no ano seguinte, em 1965, haveria eleição novamente. A campanha de JK, por exemplo, já estava nas ruas. A ditadura durou 21 anos e a primeira eleição direta para presidente só aconteceu 25 anos depois, em 1989.
Em 1973, nove após o golpe, Brasília viveria uma história que é emblemática sobre o que uma ditadura militar é capaz de fazer. Em 11 de setembro daquele ano uma criança de 7 anos é encontrada morta em um terreno baldio na Asa Norte, com sinais de violência física e sexual. Filha de uma família de classe média e aluna de uma escola católica, o assassinato de Ana Lídia logo ganharia as manchetes dos jornais.
Mas, quando as investigações chegaram a um certo ponto, a polícia civil foi proibida de continuar avançando e a imprensa foi impedida de noticiar o caso. Chegaram a prender dois suspeitos (o irmão da vítima e um amigo da família), mas a Justiça mandou soltá-los por falta de provas.
Décadas depois, na única entrevista que deu à imprensa, Álvaro Braga, irmão de Ana Lídia, disse que ele e Duque, o amigo da família, foram usados pelo regime militar como bodes expiatórios. Isso porque as investigações apontavam para a participação no crime de filhos de pessoas influentes do governo militar: o filho do ministro da Justiça e o filho do líder do governo no Senado. Eram da chamada “patota de filhinhos de poderosos” que mandavam e desmandavam em Brasília. Agiam sem limites, sabendo que seus erros seriam acobertados pelos pais. Em 1973 eu era muito novo, mas vi e ouvi sobre algumas arbitrariedades cometidas.
Em 2013, quando o crime contra Ana Lídia completou 40 anos, decidi que escreveria sobre o caso. Inicialmente pensei em produzir um livro reportagem. Li e pesquisei muito sobre o assunto. Mas cheguei a um ponto onde as coisas não avançavam. Não havia documentos que comprovassem nada daquilo que eu pretendia escrever. O caso Ana Lídia era uma grande lacuna na história da cidade. A família da menina foi embora de Brasília e o silêncio caiu sobre o caso e a cidade.
Por sugestão de um amigo, decidi escrever um livro de ficção sobre o crime. Troquei nomes, criei personagens novos e deixei a imaginação agir. Em 2017 lancei, em edição do autor, o romance Silêncio na cidade. No ano passado, quando o crime completou 50 anos, a Saíra Editorial, de São Paulo, relançou a obra, em edição especial voltada para adolescentes. A ideia da Saíra fez todo o sentido pra mim, pois escrevi o livro para que os jovens soubessem que durante a ditadura era possível matar e se safar da cadeia se você tivesse pais influentes. Hoje, isso é bem mais difícil, mas a Justiça no Brasil ainda se guia muitas vezes pela cor e pela conta bancária das pessoas. Resquícios do nosso passado escravocrata e dos anos de arbítrio, antes e após 1964.
Hoje temos uma Constituição que é anti-ditadura e que possui princípios normativos que iguala a todos, em direitos e deveres. Se ainda não alcançamos uma democracia plena não é por falta de leis, mas por desinteresse das elites em ter um Estado igualitário no tratamento das pessoas, independente da cor, do sexo ou da origem social.
Meu livro é a minha contribuição para que não se esqueça do que uma ditadura pode fazer. É capaz de acobertar a morte de uma criança para salvar os seus protegidos.
Chega de silêncio. #DitaduraNuncaMais
*****
Roberto Seabra, escritor - nas redes sociais.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião desta página, se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.