O povoado ainda ostentava um nome poético: Várzea Grande. Encostado no sopé da Serra da Capivara, tudo ali parecia banhado com tinta ocre. O barro vermelho do solo estava entranhado na vida daquela gente simples. A água “potável” da pequena barragem tinha a cor de suco de buriti. Um poeta cruel escreveu que os viventes dali “tinham almas enferrujadas”.
Depois de uma viagem que parecia eterna, o ônibus da “Estrela D’alva” parou em frente a uma birosca onde se vendiam alimentos e bebidas. Cansados e sedentos, os passageiros desceram lentamente. Alguns apenas para “esticar as pernas”. Em torno do ônibus, meninos entanguidos vendiam laranjas, tangerinas e outros arremedos de frutas.
Eu permaneci no ônibus. Além de estar adoentado, não disponha de um cruzeiro para comprar uma bala. Aproveitei a parada para recostar a cabeça na poltrona da frente e descansar o juízo. Fiquei quieto por um instante. Ao levantar a vista, deparei-me com uma das cenas mais belas que minhas retinas já viram: na moldura ordinária da janela de madeira, uma moça sorria lindamente. Morena, olhos acesos e os cabelos longos emoldurando um rosto juvenil... Olhei-a por um instante, tempo suficiente para gravar para sempre sua imagem na minha memória. Zonzo de encanto, baixei a vista. Quando levantei a cabeça, a moça havia desaparecido.
Na vã tentativa de vê-la, desci do ônibus e espichei o olhar para o interior da casa mal iluminada. Nunca mais a vi. Decidi que, um dia, faria um poema capaz de eternizar aquele momento. Tentei algumas vezes, com resultados pífios. Desisti de vez quando li “A mulher anônima”, de Murilo Mendes, que termina assim: “Lembra-te da bela mulher que estremeceu por ti/E sê-lhe fiel até o último dia de tua vida”. Assim tem sido.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - redes sociais.
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