Num final de tarde, antes do início das aulas, entrei na biblioteca do Liceu. Meio desarrumada, tinha um acervo razoável. Aleatoriamente, peguei um livro que estava sobre o balcão. Língua Portuguesa, de Wálter Wey. A capa era um convite a não ler. Abri numa página qualquer e deparei-me com o “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade. Comecei a ler: “Quando nasci, um anjo torto/desses que vivem nas sombras/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Parei, comecei novamente e, à proporção que avançava, mais se acentuava em mim a sensação de estranhamento. Afeito à musicalidade do cordel, com versos heptassílabos, e aos sonetos em versos decassílabos, não podia entender aquele texto duro, quase prosaico, com uma ironia que, à época, me escapava. Procurei outros poemas do Drummond no livro, não encontrei. O texto ficou martelando meu juízo por vários dias. Que raio de poema era aquele que me instigava tanto?
Conversei sobre o assunto com um colega e ele me disse: “É um desses modernistas malucos. Você precisa ler "No meio do caminho", um trem sem pé e nem cabeça”. Resolvi procurar o tal poema. Quando o li, em meios as repetições, um verso cintilante: “nunca esquecerei daquele fato na /vida de minhas retinas tão fatigadas”. Pronto: eu agora só queria ler aquele poeta cujo rosto, enorme, parecia desproporcional ao restante do corpo. Tempos depois, fiquei sabendo que o escritor O. G. Rego de Carvalho, quando aluno do Liceu, por pouco não foi expulso ao sair em defesa de Drummond numa aula em que o professor de português espinafrava o poeta mineiro. De vingança, O. G. procurou um dos sonetos menos conhecidos do Bilac e levou para o dito professor analisar. Afirmou ser ele o autor do poema. O professor não se fez de rogado: apontou erros de métrica, de rima, de pontuação... Com um sorriso de vitória nos lábios, o futuro romancista teria afirmado: “O Senhor não sabe é de nada”. Mais tarde, este velho professor participou de uma campanha sórdida movida por alguns intelectuais do Piauí contra o autor de Rio Subterrâneo.
Muito tempo depois, uma moça linda de viver, me deu de presente o livro Reunião, uma antologia com dez livros do Drummond. Nunca me esquecerei deste fato na vida das minhas retinas tão sedentas de beleza...
Uma tarde, na companhia de Salgado Maranhão e Moisés, avistei o poeta em Ipanema. Trajando um terno azul-calcinha, apressadinho, o poeta seguia impávido. Os companheiros quiseram parar para cumprimentar Drummond. Como eu havia lido "Apelo aos meus dessemelhantes em favor da paz", afirmei: deixa o poeta em paz. Pode estar ruminando algum poema novo. Meninos, eu vi o Gauche. Não é pouco.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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