Facebook
  RSS
  Whatsapp
Segunda-feira, 25 de novembro de 2024
Colunas /

Cultura

Cultura

cantidiosfilho@gmail.com

15/08/2024 - 11h15

Compartilhe

Cultura

cantidiosfilho@gmail.com

15/08/2024 - 11h15

Zé Sanfoneiro

 

Personagem do livro Figuras na paisagem árida.

 Personagem do livro Figuras na paisagem árida.

Novembro chegou e com ele, as primeiras chuvas. E com as chuvas, o Zé Sanfoneiro. Passageiro do vento, nada conduzia, não se sabe de onde vinha, não tinha destino certo nem prazo para chegar. Teria pouco mais de 30 anos de idade, estatura mediana, cabelos ruivos e barba rala. Por causa dos dentes proeminentes, parecia estar sempre sorrindo. Falava pouco e tocava o tempo inteiro. Curiosamente, não tinha sanfona, melhor dizendo, tinha uma sanfona imaginária. As costelas funcionavam como o teclado, que percorria com a mão direita, ágil, nervosa. Com a mão esquerda, fazia o movimento de abrir e fechar o fole do instrumento que só ele via. Com a boca, emitia uma infinidade de sons. Tocava basicamente baiões, xotes, cocos, forrós e frevos. O repertório contemplava Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Sivuca, Pedro Sertanejo e outras feras nordestinas. Tocava bem, era afinado e não saía do ritmo.  Em curtíssimo espaço de tempo, conquistou a todos.
            
Como já afirmei em outras oportunidades, dona Purcina tinha o condão de atrair loucos de todas as procedências. Zé Sanfoneiro era apenas mais um. Chegou num final de tarde, sentou-se na calçada alta e, sem se fazer de rogado, começou a tocar. Minha mãe ouviu as músicas, cantou uma delas e entrou. Ao retornar, trouxe um taco de rapadura, um pouco de farinha e uma caneca d’água. Como naquela propaganda do uísque de procedência duvidosa, o Zé “entrou para o clube”. A comida e a água eram uma espécie de senha: a partir daquele instante, o Zé Sanfoneiro passava a integrar a grei dos “loucos da tia Purcina”.

Em nossa casa havia uma lei cumprida à risca: ninguém comia sem trabalhar. Assim, entre uma “sanfonada” e outra, o Zé cortava lenha, dava ração aos bichos, trabalhava conosco. Não causava espécie vê-lo interromper um quefazer para solfejar um frevo. Lá de dentro, dona Purcina berrava: “Primeiro a obrigação; depois, a devoção”. O Zé entendia e voltava ao batente. Até seu Liberato, que não gostava dos hóspedes de minha velha, encheu-se de afeição pelo Sanfoneiro. Às vezes, acendia um cigarro e pedia: “Zé, toca  Asa Branca”.  O Zé empertigava-se, respirava fundo, e sapecava  o baião que imortalizou Luiz  Gonzaga e Humberto Teixeira. O velho concedia-lhe o único elogio que conhecia: “Tocou conforme, Zé”.

Numa manhã de abril, sem mais nem menos, o Zé Sanfoneiro levantou-se, sacudiu a poeira da roupa e, sem se despedir de ninguém, partiu tocando “A volta da asa branca”. Foi-se afastando, afastando, até ser engolido pelo azul...

Às vezes , quando estou sozinho, experimento tocar minha sanfoninha imaginária: o repertório é basicamente o mesmo do Zé Sanfoneiro, mas as notas nem sempre saem tão nítidas e afinadas... Fazer o quê? O Zé era um louco profissional; quanto a mim,  nunca passei de um simples amador...

*****
Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 


 

Comentários